Por: | 24/03/2025
LETRA LÚDICA
Hildeberto Barbosa Filho
Viagem de volta
É bom voltar a certos amores. Certos amores literários, por exemplo. Não amamos apenas as coisas reais. O universo imaginário, com seus temas, enredos, ritmos, cenários, personagens, também merece nosso amor.
Para
mim, alguns autores ou autoras não são apenas lidos, são amados. E, por serem amados, nunca são lidos definitivamente, mesmo que sejam lidos por completo.
Às vezes, fico algum tempo longe deles, e, movido por razões várias, começo a enfrentar outras solicitações de leitura, percorrer outros caminhos, experimentar sabores diferentes na instância do conhecimento e do prazer. Mas, aqui e ali, procuro fazer a viagem de volta. Os amores são exigentes.
Não importa se se trata de um ficcionista, de um ensaísta ou de um poeta. Cada um, a seu modo e na clareira de sua criação, como que me chama ou me convida para estar com ele de novo, dentro de sua geografia vocabular, do seu universo imaginário e imagético que me confere preciosas mônadas de sabedoria ou me prende ao reino mágico e essencial da beleza.
Uns me devolvem as secretas lições da tristeza; outros me estimulam o gosto da arte de refletir. Há os que falam de amor, do tempo, da dúvida, da terra, de Deus. Também me deparo com aqueles que são puro devaneio, melodia obscura, ideias intempestivas, sugestões solares e noturnas. Não esqueço, aqui, aquele ou aquela que transformam a palavra num corpo cilíndrico, aberto aos pedidos inesperados das grandes epifanias.
Um Guimarães Rosa ou uma Clarice Lispector; um Alceu Amoroso Lima ou um Augusto Meyer; uma Cecília Meireles ou um Augusto Frederico Schmidt, só para me restringir a um pequeno capítulo da literatura brasileira, me vêm à memória na casualidade desta crônica.
Não são autores que se leem por completo. Não são autores que se permitem a leitura apenas de reconhecimento, de curiosidade, de visitação. Não são autores talhados para o esquecimento. São autores que exigem a nossa íntima convivência, o permanente e prazeroso retorno ao aconchego de suas páginas.
Seus textos cristalizam, quer na sutileza do verso, quer na fluidez e na sinuosidade da prosa, a verdade seminal contida no pensamento de Ezra Pound: “Literatura é novidade que é sempre novidade”.
Por isto mesmo nunca digo que os li. Digo que os estou lendo, relendo-os, dialogando com eles, na circunstância venturosa da leitura inesgotável. Na leitura de sempre. Como um fato único na diversidade da vida. Um ato de amor.
Guimarães flui como um rio mítico. Sua linguagem possui o odor de uma metafísica. Clarice me parece um bruxedo luminoso. Seu estilo purifica como óleo curativo. Alceu toca a carruagem das ideias com amor e sabedoria. Augusto nasceu para capturar o sigilo das formas verbais. Cecília me parece uma oração encantada, uma harpa a solar a partitura do tempo, e Schmidt faz do verso um oráculo da solidão e da melancolia.
Essas coisas não se realizam na banalidade do imediato. Essas coisas pertencem ao ciclo da duração. Duram para sempre como tudo que é belo. Como tudo que se ama. Por isto, sempre estou fazendo a viagem de volta.
(Texto publicado ontem, 23 de marco de 2025, em A União)