Por: | 06/08/2025
Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Bukowski em cartas
Estou lendo Sobre a escrita: cartas, de Charles Bukowski (Rio de Janeiro: Harper Collins, 2023). O livro é organizado por Abel Debritto, especialista no autor, e traduzido por Isadora Sinay.
Trata-se, em certo sentido, de uma espécie de antimanual a respeito do ato de escrever. Posso dizer que Charles Bukowski se fez legítimo outsider, quer na maneira de viver, quer no uso persistente da palavra.
Lendo suas cartas para seus diversos editores, é possível extrair uma poética pelo avesso e, portanto, me aproximar de certos parâmetros enviesados que caracterizam o seu agônico e dilacerado processo de criação.
Não são poucas as passagens nas quais fustiga, sem complacência, a convenção e o autoritarismo do cânone literário, ao mesmo tempo em que se desnuda perante os sortilégios da palavra e a dureza da vida.
Aliás, não dá para separar a arte da vida nem a vida da arte, quando Bukowski pensa, age e escreve. Ao seu modo inquieto e franco, medita sobre a poesia, sobre o poema, sobre a escrita, como fenômenos estéticos, porém vitais, e colados filosoficamente aos apelos banais e concretos do cotidiano.
Numa carta, destinada a Judson Crews, em 4 de novembro de 1953, afirma: “(...) Não sei o que me interessa. O que não é monótono, acho. Poesia de verdade é poesia morta, mesmo que bonita”.
Para os editores da Nomad, escreve em setembro de 1958: “(...) Venho trabalhando com poesia nos últimos anos, depois de um branco de cerca de 10 anos, autoimposto, eu acho, e bastante infeliz, mas não sem seus momentos. Não sou do tipo que olha para o desperdício voluntário como perda total - há música em tudo, mesmo na derrota”.
Reflexões como estas recorrem, aqui e ali, no texto das cartas, provocando a recepção do leitor, testando seu alcance sensível e intelectivo em face do enigma da experiência poética. Por outro lado, estabelecem focos de luz crítica para convivermos melhor e mais livremente com o ácido intenso de sua dicção. Seja no poema, seja na prosa.
À página 31, numa carta para Anthony Linick, datada de setembro de 1959, diz que a “arte da poesia carrega consigo seus próprios poderes sem que seja necessário esquematizá-los em listas críticas”. Ao que acrescenta: “ Não quero dizer que a poesia deveria ser um palhaço libertino e irresponsável jogando palavras no vazio. Mas a sensação de um bom poema carrega sua própria razão de ser”.
Como não lhe dá razão?
Os fios teóricos, tecidos em raciocínios assim, não me parecem frutos de uma mera formação livresca (que o autor, na verdade, nunca teve), mas de sua prática visceral e continua com a palavra.
Charles Bukowski fala com a cátedra da própria experiência, com o saber das coisas feitas e vividas, e, através do estilo coloquial e direto do gênero epistolar. Como o fizeram um Gustave Flaubert, nas Cartas exemplares, e um Rainer Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta, assim como tantos outros e outras que se valeram do testemunho pessoal para meditar acerca do fenômeno da criação literária.
(Publicado em A União em 03/08/25)