Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa

As coisas (Para Tereza/Rodrigo, artistas portugueses)

Por: | 30/09/2025

As coisas

(Para Tereza/Rodrigo, artistas portugueses)

As coisas

não estão mortas

como pensamos.

As coisas

têm vida, para o bem,

para o mal.

Restos de ossos, terrenos baldios,

utensílios estragados, ruínas.

As coisas

estão imóveis, mexem-se,

no entanto, no silêncio.

As coisas

não falam, não têm idioma

nem fábula.

As coisas

estão aí, dentro do karma,

do vazio.

As coisas

somos nós, o mundo

são as coisas.

Frascos quebrados, pinças perdidas,

pentes inúteis, cinzas de plástico.

As coisas

me espiam de fora,

dentro é escuridão.

As coisas

se mostram como coisas

que são.

Coisas

desse mundo, de outros

que virão.

Coisas

concretas, coisas solertes,

findas, começarão.

Coisas

que têm cores, coisas

neutras, anônimas,

Coisas

que me pedem o suplício,

a dor, o esquecimento.

O brinquedo quebrado, a blusa

estragada, a ferrugem dos arames.

Coisas

do vento, da chuva,

do lento renascer dos dias.

Coisas

alegres, coisas tristes,

coisas frias.

Coisas

que vêm, de antigamente,

agora.

Coisas

de nunca, coisas de sempre,

eternamente.

Coisas

de vidro, carne, fósseis,

porcelana do martírio.

Coisas

quase perfeitas,

que são delírios.

Coisas

que brotam da terra,

naufragam nos rios.

Coisas

no cio como as coisas

poéticas.

Bonecas envelhecidas, bolas

furadas, soldadinhos de chumbo

derrotados.

Coisas

de setembro, mês da falta

que engana,

do leito que corre pela pele

do texto, o contexto que nunca

se completa, coisas abertas

como a vida que se escancara

incompleta. Coisas da história

e do mito, o infinito nas coisas.

Coisas que me assustam

dentro da calabroia da noite,

coisas do passado e da insônia,

dos ausentes, dos mortos, da agonia.

Coisas da melancolia

que me invadem na hora da poesia.

Urinóis apodrecidos, severas

dentaduras, óculos enceguecidos.

Coisas miúdas, anônimas,

que se fazem grandes, maiores

que o hematoma da China,

das coisas miúdas e apertadas.

Coisas feitas de nada, essas

me seduzem como fêmea fatal.

Coisas do futuro e da espera,

esperar é amar certas coisas.

Coisas do país, coisas da guerra,

coisas da terra, coisas de raiz,

coisas que me dizem, nunca

me encerram, que sou coisas

precárias, árias dissonantes

de uma música deserta.

A flor esquecida no alfarrábio,

o rascunho da carta que não foi,

selos velhos, cromos, fitinhas

de papel crepom.

Coisas aflitas, coisas agônicas,

disso fiz o meu poema.

Coisas são coisas e são temas

do desespero, da inutilidade.

Coisas que me perseguem,

faz tempo, e não existem

e doem e alucinam.

Coisas que sou e não sou,

quem diria, dentro da poesia

das coisas e sua louca obsessão.

Sou irmão das coisas para sempre.

Coisas rasteiras, as que cheiram

mal. O ocaso dentro do peito,

o mal feito das coisas ditando

o horror na Ucrânia.

Coisas do tamanho do mundo,

a fé em Cristo, a cruz torturada.

Coisas que se foram no sangue,

a alvorada no corpo ressuscitada.

Coisas que nem se faziam

quando anoitecia no coração.

Coisas e coisas e coisas,

nada existe fora disso.

Se penso na morte, é esta coisa

acabada. Se penso na vida

é esta coisa inconclusa, maior

que as coisas que temos

e não temos dentro do perdido,

as coisas, as coisas, as coisas.


FONTE: Facebook - Acesse

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