E Neruda não recebeu resposta
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
As pessoas são as mesmas em todo lugar? Mudam a geografia, a língua, a história e a cultura, mas os vícios e as virtudes dos homens são potencialmente os mesmos, desde sempre? Existe o que se chama de “natureza humana”? É possível, mas há quem negue essa tal natureza. Os existencialistas, por exemplo, para os quais, a existência precedendo a essência, não há por que se falar em uma natureza humana predefinida, já que as pessoas vão se definindo por si mesmas, para o bem e para o mal, à medida em que vivem, ou seja, vão se construindo aos poucos, em meio a escolhas e circunstâncias. É uma questão filosófica interessante. Mas o fato é que a experiência tem mostrado fortes argumentos em contrário, independentemente de crenças religiosas ou assemelhadas. As pessoas se repetem tanto, no bem e no mal, em todo lugar e ao longo do tempo, que parecem mesmo ter algo em comum.
Deixemos então pairando no ar esse teórico problema e passemos aos fatos. Vou contar a seguir uma historinha que colhi de Mario Vargas Llosa num texto que o peruano escreveu quando do centenário de nascimento do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), Prêmio Nobel de Literatura de 1971 (El fuego de la imaginación, Editora Alfaguara, México, 2022). Aconteceu à noite, na casa do poeta em Isla Negra. Já eram os derradeiros anos de vida de Neruda. Não ficou claro se ele já tinha recebido ou não o Nobel (1971), mas, de qualquer modo, com Nobel ou não, ele já era internacionalmente reconhecido e à época devia ser o maior escritor vivo do Chile – ou pelo menos o mais famoso. Os dois amigos conversavam após um farto jantar, quando o poeta contou ao romancista que tinha enviado seu mais recente livro, com dedicatória, a cinco jovens poetas chilenos e nenhum deles havia lhe acusado o recebimento. Nenhum dos cinco. Vejam só.
Como interpretar, portanto, tamanha ingratidão, tamanha indiferença? Fosse Neruda um principiante desconhecido, nem assim justificar-se-ia a deseducada omissão dos cinco jovens. Quem recebe um livro de um autor tem o dever de agradecer, apreciando ou não a obra. É uma simples questão de educação. Gentileza se retribui com gentileza e estamos conversados. No Chile ou em qualquer lugar do mundo. Foram então mal-educados os cinco poetas simultaneamente? Difícil de acreditar. A probabilidade é mínima.
Outra hipótese: os cinco jovens queriam distância de Neruda por razões ideológicas, sabendo-se que ele era assumidamente comunista. Seriam os cinco poetas coincidentemente de direita e não queriam se comprometer nem mesmo com um inofensivo agradecimento ao maior de todos eles? É possível, mas improvável. Pois se fossem tão claramente anticomunistas é de se supor que não teriam sido agraciados por Neruda, se bem que àquela altura da vida este, altaneiro e sereno, já não distinguisse entre aliados e adversários, como advertiu Vargas Llosa. Neste caso, o envio do livro tinha se dado, de forma magnânima, apenas de poeta para poeta, a despeito de tudo o mais. E também é provável que à época do envio dos volumes a radicalização política no Chile ainda não tivesse atingido um pico que explicasse o silêncio cauteloso ou acintoso dos cinco ingratos. Novamente, não dá para acreditar. A probabilidade é mínima.
De fato, é um mistério. Pois se um ou outro tivesse deixado de agradecer, compreende-se, mas todos os cinco, como explicar? Imagine o leitor cinco jovens poetas brasileiros recebendo de Drummond um livro com personalíssima e gentil dedicatória? Seria praticamente impossível que não respondessem, honradíssimos, ao grande itabirano, por mais diferenças que tivessem. Por que então a mudez dos cinco chilenos?
Dá para se intuir nessa espontânea confissão de Neruda mais que uma mágoa, uma indisfarçável tristeza e um claro desapontamento. É como se ele não se julgasse merecedor de tal descaso por parte de conterrâneos e ainda por cima poetas, colegas de ofício literário e conhecedores do valor da obra do mais velho. Segundo Vargas Llosa, havia melancolia nesse desabafo noturno. E como poderia não haver, pergunto, também tocado por uma melancólica solidariedade ao autor de Vinte poemas de amor e uma canção desesperada.
Neruda morreu de grave enfermidade em 1973, aos 69 anos, logo após o golpe de Pinochet que derrubou o presidente Allende. A repressão da época não conseguiu atingi-lo porque a morte foi mais rápida, livrando-o dos infortúnios que seriam inevitáveis se estivesse bem de saúde. De modo que, assim, foi menos ruim para todos, perseguidores e vítima. Entretanto, há quem suspeite de que o poeta teria sido na verdade envenenado pela ditadura. De qualquer maneira, o poeta levou ao túmulo não só o pesar pelo destino da pátria, mas também aquele desgosto pela desatenção dos cinco jovens.
Alguma razão existiu certamente para que nenhum dos cinco chilenos agradecesse a Neruda o livro enviado, contra todas as naturais expectativas. De minha parte, esforço-me para não julgá-los desfavoravelmente, contra todos os meus naturais impulsos de condená-los. Mas, repito, pode ser que tenham tido cada qual seus motivos, não sei. As pessoas têm suas fraquezas, seus medos, seus limites, suas circunstâncias pessoais e familiares. Nesses momentos duvidosos, sempre penso em quem de nós teria coragem de, pondo a família em risco, abrigar Anne Frank em casa numa Amsterdã ocupada pelos nazistas. O herói que se apresente. Debitemos tudo, pois, à velha, genérica e útil “natureza humana”, pois nela cabem certamente todas as explicações, fantasiosas que sejam, de nossas eventuais grandezas e cotidianas abjeções. Aqui, ali, no Chile e em todo lugar.
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