Por: | 20/03/2024
Letra Lúdica
Hildeberto Barbosa Filho
Uma fortuna crítica
A organização é um dos critérios básicos de avaliação no âmbito da retórica clássica. No campo específico
dos conteúdos culturais e cognitivos, adquire relevo especial, na medida em que ordena e conforma assuntos, temas, motivos, na diretriz da clareza expositiva e da sistematização da matéria que se põe a serviço da pesquisa e dos estudos críticos e exegéticos.
Organizar combina com orientar. A cultura, nas suas diversas manifestações e matizes, nada mais é que a atitude de orientação, o esforço pelo melhor desempenho, a produção de bens materiais e simbólicos que possam imprimir certo sentido à existência humana. Ortega Y Gasset, que pensa a vida como um naufrágio, afirma que a cultura é o ato heroico de salvação, “um movimento natatório”, ou, dito de outra forma, a “agitação dos braços com que reage ante sua própria perdição”.
Faço este rápido percurso ideativo, para comentar brevemente a coletânea, A Paraíba e seus problemas: Cem anos depois (Campina Grande: EDUEPB, 2023), organizada pelos historiadores José Octavio de Arruda Melo e Lúcia de Fátima Guerra Ferreira.
O livro se apresenta como volume I, Reedições da Fortuna Crítica, contendo um lúcido prefácio de Rosa Maria Godoy Silveira, e cinco partes assim distribuídas: I. “Um livro por si mesmo”, II. “Prefácios, apresentações e posfácios”; III. “As primeiras analises”; IV. “A clarinada dos anos oitenta”, e V. “Universidade e estudos mais recentes”, além de um Apêndice, intitulado “Linha do tempo: vida e obra de José Américo”.
Como se pode ver, nada escapa ao olhar investigativo dos organizadores no que concerne ao mapeamento indispensável de uma fortuna crítica a respeito de uma obra fundamental da bibliografia americista, sobretudo, se considerarmos os problemas regionais e paraibanos que traz à tona, em seus enclaves econômicos, climatológicos, políticos, administrativos e etnográficos.
Livre centenário, A Paraíba e seus problemas aparece, aqui, sob o prisma diferenciado daqueles que, de maneira mais leve e ligeira, ou de modo mais atento e vertical, se debruçaram sobre seu denso e profundo conteúdo, contribuindo, assim, para que o seu leitor (talvez deva dizer, seu raro leitor!) possa adentrar, orientado e mais seguro, por entre o cipoal de ideias e argumentos que José Américo de Almeida desenvolve na análise e na interpretação do complexo fisiográfico e cultural da Paraíba nas duas primeiras décadas do século passado.
José Octávio assina, na Parte I, espécie de texto introdutório, “Um livro por si mesmo”, onde comenta aspectos essenciais dessa primeira fortuna crítica. Se não consuma, a rigor, uma tipologia crítica que pudesse notificar melhor a metodologia e o alcance epistemológico das leituras, propõe uma divisão esclarecedora e operacional, destacando, sobretudo, a relevância dos prefácios, o caráter das “primeiras abordagens”, a injunção de certa “Conspiração do silêncio” em torno do grande livro, a “clarinada dos anos 80” e a intervenção da crítica universitária, a partir de novos estudos.
Um livro não só vale pelo que contém. Vale, principalmente, pelas relações que pode estabelecer com outros livros. A situação em que se coloca diante do contexto cultural, não raro, pesa mais que o próprio valor intrínseco de seu conteúdo. Daí, a importância das fortunas críticas.
No caso em tela, por exemplo, a fortuna crítica que ora se publica, sob a coordenação de José Octávio e de Lúcia Guerra, nos ajuda a compreender melhor a obra A Paraíba e seus problemas, dentro, inclusive, deste viés relacional, tanto no que toca à força deste livro para a configuração científica e literária da obra do próprio José Américo quanto nas ressonâncias que refletem na tradição do pensamento histórico, geográfico e social do Nordeste e do Brasil.
Livro de feição euclidiana! Por isto mesmo, um ensaio de natureza civilizatória que dialoga, nas fronteiras de uma biblioteca pública, com obras como Os sertões, de Euclides da Cunha; Nordeste, de Gilberto Freyre, e O outro Nordeste, de Djacy Menezes. Isto, sem contar com suas incidências indiretas e oblíquas em obras mais estritamente literárias, a exemplo de A bagaceira, Boqueirão e Coiteiros, do próprio José Américo, como Vidas secas, de Graciliano Ramos; Pedra bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego.
Vejo, portanto, com bons olhos e louvo criticamente o trabalho de José Octávio e Lúcia Guerra. O espírito didático se alia ao serviço da pesquisa; o domínio do conteúdo se associa à capacidade produtiva; o critério seletivo se sustenta no valor indiscutível do objeto analisado e, de tudo isto, resulta a organização da cultura. Aquele ato, a princípio apenas de índole descritiva ou informativa, para se transmutar, depois, em legitima e rigorosa pauta do conhecimento.