Por Hildeberto Barbosa Filho
Independentemente da temática, creio que a formulação da linguagem poética contém alguma intensidade erótica. As palavras, no poema, encontram-se numa equação de requisitos relacionais que permitem o toque, o cheiro, o gosto, o sabor, o ritmo e a visualidade, numa espécie de cópula sintática e semântica identificada, sobretudo, com as fantasias de Eros.
A energia lúdica que promove seus movimentos pelas zonas erógenas do texto poético, acariciando a fisicalidade dos verbos e substantivos, mesmo que fale de Deus, da morte, do tempo e da natureza, por exemplo, fala – quer me parecer – através de uma regência expressiva que convoca o erotismo para o miolo da linguagem. Admito, portanto, e sem reservas, o postulado de Octavio Paz, quando, em certa passagem de “A dupla chama: amor e erotismo”, assinala: “A relação entre poesia e erotismo é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda é uma erótica verbal”.
Pois bem: é a essa “erótica verbal” e a essa “poética corporal” que pretendo me referir, lendo e relendo os poemas de Linaldo Guedes, reunidos no livro “Tara e outros otimismos” (São Paulo: Patuá, 2016).
O poeta nunca foi indiferente às solicitações do lirismo erótico. Diria mesmo que esta vertente abre uma porta de entrada para o seu território poético. Tanto em “Os zumbis também escutam blues e outros poemas (1998), quanto em “Intervalo lírico” (2005) e em “Metáforas para um duelo no Sertão” (2012), vejo, aqui e ali, investimentos verbais matizados pelo apelo sensual e pela experiência erótica que, se já preexistem no corpo dos vocábulos presididos pela poeticidade em si, intensificam-se, no entanto, pela escolha e adesão temáticas.
“Tara e outros otimismos” vem consolidar – parece-me -, e em arranjos expressionais mais refinados, as perspectivas abertas por esses primeiros sinais. Seu âmbito de atuação parte, a princípio, da materialidade física do corpo, com suas complexas redes de desejo e necessidades, da sexualidade natural e instintiva, com seus imperativos fisiológicos, para culminar na sagração da plenitude erótica, absorvida humanamente pela imaginação lírica e recamada pelos tecidos da emoção estética.
Ora, o que é erotismo no plano da linguagem transmuda-se em erotismo na esfera temática. Erotismo como uma experiência que ultrapassa os limites biológicos, as determinações sexuais, o homem na sua primeira natureza, como diria Rousseau, para se fazer, como diria o já citado Octavio Paz, “invenção, variação incessante”.
Ora, a poesia de Linaldo Guedes, neste livro monotemático, é precisamente isto: uma “variação incessante”, uma aventura pela eroticidade das palavras, mas também uma aventura pelo idioma da eroticidade, na medida em que ela – a eroticidade – é recortada metonimicamente pelos seus signos e rituais que mobilizam todos os fluxos possíveis na liberdade do ato amoroso.
O corpo da mulher amada, com suas estações, seus recantos sombrios, suas áreas solares; o mapa íntimo dos objetos sagrados (a casa, o quarto, a cama, as uvas, os condimentos, a calcinha, a flor, a fotografia, os livros e outros fetiches orgásticos), assim como as alusões intertextuais e literárias, sacramentam os dispositivos retóricos do jogo erótico na arquitetura do poema e estabelecem os primados líricos de sua poética.
Os lances eróticos não se resumem a meras descrições. Não é a observação que guia a investigação do corpo. É a imaginação poética que dita as regras do poema, contextualizando os compassos eróticos para além dos limites carnais, numa dicção dos gestos e dos atos, mas também do pensamento e das abstrações. Um poema, por exemplo, como “Feliz ano novo”, no qual o título funciona como um verso, elucida bem o que quero dizer. Vejamos: “teus seios/brilham no ocaso/vermelho/que invade/o ano virgem”. Na mesma perspectiva, leiam-se, entre outros, “Ritual solitário”, “Retórica sexual”, “Reza” e “Mapa-mundi”.
De outra parte, poemas como “Menino de engenho”, “Lolita”, “Xamã moderno” e “Histórias que Lolita não conta”, entre outras incursões dialógicas, abrigam o erotismo acostados a outra vozes, num procedimento de trocas simbólicas que tendem a alargar seus refúgios íntimos, através de um deslocamento do corpo para a alma, do físico para o metafísico, ou, dito de outra forma: da sexualidade para o erotismo, do poema para a poesia.
A propósito, o erotismo, em Linaldo Guedes, não dispensa o percurso metalinguístico. A língua, que se faz linguagem poética, deixa-se refletir, em instante perfomativo, na consecução ativa do próprio ato amoroso, como se fora uma correspondente orgástica a que não falta senso de humor. Não há exemplo melhor do que o texto “O poema e a musa”. Vamos lê-lo: “ela acordou com um poema/dentro das pernas//não houve tempo para recitar/odes, canções ou elegias//muito menos houve tempo/de saber se o poema era/da escola parnasiana ou barroca//mas ela sentiu que, como um soneto,/o poema chegava ao clímax/com chave de ouro”.
Estreitando a geografia temática, para operar a construção de um pequeno tratado poético acerca do erotismo, Linaldo Guedes, com “Tara e outros otimismos”, parece abrir e ampliar as comportas de sua criação, maturando os resíduos idiomáticos de seus procedimentos técnicos e formais, ao mesmo tempo em que sinaliza para uma percepção mais aberta e mais livre do tema do amor.
(Resenha publicada no Jornal Contraponto, dia 5 de agosto de 2016)
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