Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa
Hildeberto Barbosa

Hélder Moura

Por: | 06/05/2024

LETRA LÚDICA
Hildeberto Barbosa Filho
Hélder Moura

O escritor e imortal, Hélder Moura, acaba de publicar A insana lucidez do ser: uma fábula (João Pessoa: Ideia, 2024). Segundo o professor e ensaísta Chico Viana, que assina o prefácio, seu texto “é forte, denso e carregado de curiosas referências literárias e musicais”. “Nele”, acrescenta, no mesmo parágrafo, “há também espaço para especulações filosóficas quanto ao sentido da vida e a nosso propósito no mundo”.
Diria que a essas especulações filosóficas se somam, nas dimensões da narrativa, considerações de ordem psicológicas, metalinguísticas e cinematográficas, formatando o tecido verbal e fabulatório com leves, porém, pertinentes digressões reflexivas.
Dividida em seis capítulos (seis dias), um “Juízo final” e uma glosa conclusiva, “Eternidade”, a narrativa possui de fábula a atmosfera insólita e fantástica, na medida em que o mundo ordinário, com a lógica rotineira das coisas cotidianas, é como que invadido pelo o estranho, o inusitado, o absurdo.
De repente, Cilgin, o protagonista, acorda e se descobre sozinho dentro de uma realidade vazia. Durante os seis dias nos quais se desenrola a ação, o personagem se vê isolado dentro de um retábulo feito de sonhos e pesadelos. Como Gregor Samsa, o anti-herói kafkiano, de A metamorfose, o impacto da nova situação vivenciada, ao mesmo tempo em que o demarca como um ser em crise (qual o ser que não está em crise?), abre as comportas para uma meditação dilacerada acerca do sentido da vida.
O sentimento de culpa, a sensação do desamparo, a presença da solidão, as heranças traumáticas, as experiências suicidas, tudo converge, ao longo de cada capítulo, para o final, em seu imperativo trágico. Cilgin se suicida, como a ratificar o postulado heideggeriano de que “somos seres para a morte”.
Se observados minuciosamente os sinais significantes do chamado “aparelho formal da enunciação”, com suas instâncias sinalizadoras, seus avisos e alertas, é possível detectar certa previsibilidade no que concerne ao desfecho da fábula. Atentemos, neste caso específico, para as referências pontuais aos suicídios de alguns escritores, a exemplo, entre outros, de Hemingway, Horácio Quiroga, Sylvia Plath e Florbela Espanca.
Tal dispositivo, no entanto, não chega a comprometer o equilíbrio estético do texto, principalmente porque as notações especulativas, as alusões intertextuais, o procedimento mesmo da composição fraseológica e o próprio relevo do episódio central, no seu estranhamento semântico, garantem os efeitos artísticos de uma narrativa literária.
Cilgin tem muito de cada um de nós, analisada a sua condição existencial. Ele me parece representar a clivagem profunda que secciona o ser humano na sua relação com a realidade. Sujeito em crise, apartado do mundo, atravessado pelas lâminas do vazio, interior e exterior, não consegue superar o legado traumático de que foi vítima na infância.
Evocando a lembrança do pai e, particularmente a sua atitude de omissão face à violência de que foi vítima o personagem, quando criança, o narrador faz a seguinte ponderação: “{...} E, mesmo quando o pai morreu, essa sensação de que algo ficou para trás sem uma solução, permaneceu. E, muitas, vezes, imaginava como, ao longo da vida essas coisas acontecem e vão formando as relações e os afetos, de uma maneira tal que o sujeito perde a noção de quem realmente é, lá em sua essência mais funda”.
Eis aí o cerne da trama dessa história trágica. Mais que contar um fato, mais que descrever um conflito, mais que simplesmente narrar, o narrador se deixa levar, acompanhando os dilemas interiores do personagem, pelo fluxo de uma meditação que põe em cena a persecução do ser diante dos enigmas da vida. Embutidas, portanto, nessa meditação que se alonga e se adensa página a página, como as colunas vertebrais do texto, estão as dolorosas indagações de sempre. Se há algo de kafkiano nesta narrativa, também ecoam, aqui, certos sons e certos ruídos dostoievskianos. Às manchas opressivas da realidade se junta a agonia psicológica do personagem, configurando um clima fechado, escuro, disfórico.
Autor culto e de visão cognitiva maturada, Hélder Moura alia, no corpo de seu texto, o viés do ensaísta ao apelo ficcional que rege o andamento das ações. Ações interiores mais que exteriores. Disciplina verbal na elaboração da linguagem, riqueza alusiva no que diz respeito aos movimentos dialógicos do texto, poder de persuasão no tatear climas e atmosferas e, sobretudo, o mergulho profundo nas cavernas escusas da alma humana, tudo me garante que estou diante de uma peça literária em que o mistério da experiência humana se converte no produto objetivo de uma realização estética.
Num dos contos de Rubem Fonseca, um personagem assegura que quando um escritor vira imortal, recebe homenagens, títulos e comendas, é porque está morto. Será mesmo? Penso que não. Hélder Moura me parece um exemplo vivo.
Jornalista combativo, em especial no campo do jornalismo político; autor de um romance singular, O incrível testamento de Dom Agápito, de linhagem picaresca e de rigoroso acabamento estilístico; estudioso da obra de Guimarães Rosa, a partir das matrizes psicanalíticas e literárias; um dos coordenadores do Pôr do Sol Literário, e ora dando a lume mais um livro, A insana lucidez do ser, Hélder Moura, sem dúvida, contradiz a referida, suposta e irônica regra. Isto, porque está na efervescência de seu lavor criativo.


FONTE: Facebook - Acesse

Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário