Areia de pote
Areia de pote
Areia de pote

Um milhão de habitantes. E daí?

Por: Francisco Gil Messias | 20/05/2024

Um milhão de habitantes. E daí?

Francisco Gil Messias

gmessias@reitoria.ufpb.br


Rapidamente João Pessoa caminha para alcançar a marca de um milhão de habitantes. Uma marca emblemática, sem dúvida, espécie de fronteira que divide as cidades grandes e as pequenas. Um símbolo (de quê?). Talvez um orgulho comunitário (de quê?). Uma afirmação do urbano sobre o rural. Para muitos, um sinal do progresso, do desenvolvimento. Mas será mesmo? Penso nas gigantescas cidades indianas, com seus milhões de habitantes ainda em meio a tanta pobreza, e vou em busca de outros parâmetros, de outras maneiras de pensar.


Reflito: em que mudaremos quando chegarmos ao primeiro milhão de habitantes? Ou tudo continuará como antes, tal qual acontece no primeiro dia do Ano Novo, a despeito de todos os fogos de artifício e comemorações da véspera? Penso que nada mudará substancialmente, salvo a vaidade de alguns tolos poderem afirmar que agora vivem numa metrópole (?) e não em uma província. Mas será que deixaremos de ser provincianos apenas por sermos mais numerosos? Desde quando a quantidade determina a qualidade? Uma multidão de tolos não deixa de sê-lo só por conta da aglomeração. Talvez ocorra exatamente o contrário: a tolice aumenta na proporção direta de seus adeptos reunidos. Além de mais tola, pela quantidade, uma multidão de tolos costuma se tornar perigosa, ou pelo menos potencialmente perigosa. Pronta para seguir desvairadamente palavras de ordem de um tolo maior. E aí tudo é possível. Do vandalismo ao assassinato em massa. A Noite de São Bartolomeu, na França, e a Noite dos Cristais, na Alemanha, são eventos históricos a se lembrar -  e a se execrar.


O fato é que nós, os pessoenses de mais idade, aqueles que ainda usufruímos de uma cidade pacata e tão boa de se viver, já começamos a notar as mudanças que o crescimento da aldeia tem causado no cotidiano e na qualidade de vida dos moradores. Claro que em comparação com outros centros mais populosos, ainda somos um oásis urbano, que, aliás tem atraído muita gente de fora, mas comparando com nosso passado recente, digamos, de cinco décadas atrás, a diferença é considerável, para não dizer imensa. Basta olhar a paisagem verticalizada dos espigões e o trânsito caótico em quase todos os horários. 


Os mais idosos ficam saudosos do passado recente e os nem tanto ficam inquietos com os novos dias. Somente os jovens, que não viram o antes nem percebem o agora, vivenciam indiferentes as transformações que moldarão o amanhã. A juventude costuma ter essa característica (não sei se boa ou ruim): viver gulosamente o hoje, sem pensar no passado nem no futuro. Mas ela terá tempo  para isso, se tiver a sorte de envelhecer. A propósito, lembro a resposta que Nélson Rodrigues deu a um repórter que lhe perguntou que conselho daria aos jovens. Ele disse apenas uma palavra: “Envelheçam!”. Grande Nélson.


Mas voltemos à urbe que se assanha. Talvez consigamos conservar em alguma medida os ares de província que temos perdido nos últimos anos e que representam uma certa doçura urbana, traço de nossa humanidade aldeã e de nossa resistência ao progresso desfigurador e inumano. Curitiba, a despeito de ser uma populosa e moderna cidade, conseguiu esse feito conciliador. Para olhos atentos, é grande e pequena ao mesmo tempo. Belo Horizonte, pelo que ouço e leio, também. São lugares em que a vida urbana ainda não perdeu o mínimo de encanto que a torna aprazível. Ao contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro e de São Paulo, capitais infelizmente dominadas pela violência, pela correria e pelo desassossego, principalmente no que tange à classe média e aos trabalhadores. No Rio, pelo menos há a praia e o próprio espírito alegre do carioca, fatores que ajudam a suportar o árduo cotidiano. Já em Sampa ...


Observo que Paris, por exemplo, mantém a qualidade de vida de seus habitantes, mesmo com seu gigantismo e todo o turismo de massa de que é vítima. Cada arrondissement é uma aldeia particular na imensa metrópole, uma cidadezinha servida de tudo, de modo que o nativo segue sua vida sem maiores atropelos, mormente os idosos, com seus hábitos e costumes sedimentados. É uma lição para o mundo. Se o crescimento é inevitável, que cresçamos o mais humanamente possível, sem nos desfigurarmos.


E cada vez mais urgente, portanto, a preservação do nosso “centro histórico”, em todos os sentidos. Será ele, e só ele, no futuro próximo e distante, que poderá lembrar aos pessoenses de amanhã o que fomos e quem somos, o espelho único que poderá mostrar fielmente  a nossa cara, de ontem, de hoje e de sempre. 


E há uma coisa que vejo como saudável nisso tudo: as inúmeras pessoas de fora que têm vindo morar  em nossa aldeia nos últimos anos, trazendo consigo outras mentalidades, mais arejadas e menos tacanhas. Agora a gente vai a um restaurante e não conhece ninguém. Nos voos para aqui, a mesma coisa. Que bom, digo para mim. Esse anonimato geral e democrático é ótimo. Nada daquelas caras de sempre, as panelinhas de sempre, todo mundo com um carimbo na testa, reconhecendo-se e cumprimentando-se mutuamente, como membros de uma mesma confraria. Nada de gente observando a marca do carro que você dirige, a roupa que você está vestindo, a sua companhia e o vinho que você pediu. Melhor, muito melhor, perder-se na urbe, dissolver-se na urbe, como um cidadão qualquer, merecedor de respeito como qualquer um, independentemente de tudo que seja apenas acidental ou transitório ou frívolo ou mundano. A pura e simples dignidade cidadã, republicana, que merecemos e desejamos para todos, indistintamente, como deve ser. 


Província, sim, mas provincianismo, não. Que a aldeia cresça, mas não tanto. E que cresça principalmente em espírito, em cultura e em civilidade.  

       


Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário