O menino sinhozinho e o jovem escravo
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
Estava recentemente bisbilhotando numa livraria, quando dei de cara com uma edição caprichada de Minha formação (Editora Glaciar, Lisboa, 2015), o clássico de Joaquim Nabuco, de 1900. É certo que já possuía a obra em outras edições, inclusive uma preciosa primeira edição (H. Garnier, Livreiro-Editor, Rio de Janeiro, 1900), mas não resisti ao belo volume em capa dura, enriquecido com a introdução do português João Pereira Coutinho e o posfácio do nosso Alfredo Bosi. Esses detalhes fazem toda a diferença, como bem sabem os bibliófilos, sejam profissionais ou amadores. Mas o fato é que um livro bonito é algo prazeroso de ver, tocar e cheirar, sem falar, claro, na fruição de seu conteúdo, quando é o caso, de tal modo que não dá para não levar para casa o tesouro.
Fazia tempo que tinha lido a obra memorialista do pernambucano que entrou para nossa história liderando a luta pela abolição da escravidão em nosso país. Recordava-me vagamente, por exemplo, de sua referência à idílica infância passada no engenho Massangana, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, de propriedade de sua madrinha-mãe, Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho, e não me lembrava absolutamente do relato de seu encontro com o jovem escravo que, fugido de uma propriedade da vizinhança, veio correndo se abraçar aos seus pés clamando por salvação. E também não tinha em mente, claro, a importância que esse fato terminou tendo para a vida de Joaquim Nabuco e para a história do Brasil. Portanto, a compra e a leitura do livro trouxeram-me tudo isso de volta, agora sob os olhos da maturidade, mais compreensivos que críticos, ainda bem.
A passagem do tempo permite que compreendamos melhor os acontecimentos e as relações entre eles, estas, no mais das vezes, despercebidas de imediato ou no curto prazo. Por isso, os historiadores não têm pressa de analisar os fatos, deixando-os amadurecer, a fim de que mostrem mais facilmente suas várias facetas. Como ninguém pode prever o futuro, salvo os planejadores dos governos, não se pode do mesmo modo adivinhar as consequências e as implicações daquilo que acontece aqui e agora.
É nesta perspectiva, creio, que podemos hoje apreciar aquele inesperado encontro, nos meados do século XIX, no engenho Massangana, entre uma criança e um jovem tão diferentes em tudo. Uma, o pequeno fidalgo Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, afilhado da proprietária do engenho; o outro, um rapazinho escravo, fugido dos maus-tratos de seu cruel senhor, morador dos arredores. O sinhozinho tinha, segundo é dito, oito anos de idade e até então a escravidão era para ele uma coisa, digamos, “natural”, que não lhe chamara a atenção, provavelmente porque na casa onde vivia não havia violência física contra os negros, e estes conviviam sem confrontos com seus senhores, pelo menos na aparência. E assim teria continuado por mais tempo, supõe-se, não tivesse sido a afobada chegada, aos pés do menino, do escravo suplicante.
Mas ouçamos a voz madura do próprio Nabuco, conforme ele, anos depois, belamente rememorou a cena em seu livro tornado clássico da literatura de língua portuguesa: “Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida… Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.”. Eis aí o acontecimento decisivo no “caminho de Damasco” daquele que, a partir dali, converteu-se, política e intelectualmente, à causa da libertação dos escravos brasileiros.
Segundo os críticos, este é talvez o trecho mais revelador de Minha formação, aquele que oferece graciosamente ao exegeta a chave do livro e da existência do autor. Creio que é justo concordar com tal afirmação, pois, de fato, aquele encontro entre o menino e o escravo foi decisivo para o futuro abolicionismo de Nabuco, assim como este (e sua liderança) foi determinante para agilizar a abolição do regime escravocrata entre nós. Se é certo que a abolição teria vindo, mais dia menos dia, com ou sem a atuação do filho do Conselheiro Nabuco de Araújo, também é certo que a carismática ação do pernambucano a antecipou em anos, o que, por si só, serviu – e serve – para coroar o seu renome para sempre. Como se sabe, existiam, em fins do século XIX, outros abolicionistas importantes no Brasil, como José Mariano, Luís Gama, José do Patrocínio e André Rebouças, entre outros, mas o brilho pessoal do imponente Nabuco, homem aristocrático, alto, bonito e bem falante, fez diferença junto aos seus colegas parlamentares e principalmente junto ao povo, este, ao contrário do que se pensa, sempre sensível aos aspectos “estéticos” da política.
Alfredo Bosi ressalta que não se pode esquecer, na luta abolicionista, a participação dos próprios escravos, através das fugas e da formação dos quilombos, além de outras formas de resistência menos ostensivas, resistências, digamos, silenciosas, não só nos eitos como nas casas-grandes. Concordo. Mas é óbvio que os escravos, sozinhos, teriam tido muito mais dificuldades e demorariam muito mais tempo para conseguir a libertação total dos cativos, sem falar na provável violência de que revestir-se-ia o processo libertador, face a oposição armada dos senhores, na hipótese de um confronto explícito entre as duas partes. Essa a razão pela qual Nabuco e outros entenderam que a abolição deveria antes vir através de uma decisão do parlamento e até mesmo do imperador, o que afinal se mostrou o caminho mais razoável e de menor custo social, a despeito da reconhecida situação de desamparo a que ficou relegada a maioria dos libertos. Daí ser razoável afirmar-se que, no caso da abolição brasileira, tivemos uma evolução e não uma revolução, como ocorreu nos EUA, onde a libertação dos escravos misturou-se à fratricida Guerra de Secessão, com graves sequelas sociais e humanas para o país.
Vê-se, portanto, que no sensibilizado menino de engenho, de repente colocado frente a frente com a crueza do regime escravocrata, formou-se o posterior abolicionista, confirmando a frase de Machado de Assis (tão amigo de Nabuco), segundo a qual “o menino é o pai do homem”. Isto o já então maduro pernambucano repetiu com outras palavras no primeiro parágrafo do capítulo “Massangana”, como que corroborando, pela experiência pessoal, a sabedoria do mestre de Dom Casmurro: “O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber…”. Eis aí o reconhecimento da relevância da infância na decifração do homem feito, verdade tão cara aos psicanalistas.
Fecundo foi, pois, aquele distante encontro entre o sinhozinho ingênuo e o sofrido jovem escravo defronte da casa-grande do engenho Massangana, Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, em meados do século XIX. Obra do acaso? Quem saberá dizê-lo? Como escreveu o poeta Vinícius: “A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros na vida”.
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