Dicotomias incontornáveis
Francisco Gil Messias
gmessias@reitoria.ufpb.br
O mundo parece dividido em dicotomias. Opostos que aparentemente se excluem. Uma forma de pensar e organizar as coisas, para melhor compreendê-las. Gilberto Freyre, sempre intuitivo, percebeu isso com muita clareza e intitulou seus principais livros dessa maneira: Casa Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos, Ordem & Progresso, Aventura & Rotina, entre outros. E de fato tem sido assim ao longo da história: Deus e o Diabo, Paraíso e Inferno, Bem e Mal, Atenas e Esparta, Civilização e Barbárie, Teocentrismo e Antropocentrismo, Idade das Trevas e Idade das Luzes, Fé e Razão, e por aí vai. São conceitos que à primeira vista se opõem e se repelem, mas que não raro se misturam em alguma medida, o que evidentemente complica pensamentos e juízos, obrigando-nos a superar as limitações do Preto e Branco, para adentrarmos a indefinição e a riqueza dos cinquenta tons de cinza (ou mais).
Seguindo esse raciocínio, separei cinco dicotomias essenciais para a reflexão ligeira do leitor. Dicotomias determinantes, pois delas decorrem outras, com implicações para a visão de mundo e a maneira de se conduzir nele. Tais oposições nem sempre são percebidas pelas pessoas e no entanto estão presentes em seus atos cotidianos. Daí a utilidade de tê-las presentes em nossa mente, dando-nos maior consciência de quem somos – e porquê.
A primeira é Imanência versus Transcendência. Estes dois conceitos definem tudo, a meu ver, principalmente se opostos radicalmente. Da imanência vêm, entre outros, o materialismo, o positivismo, o racionalismo, o cientificismo e o ateísmo, por exemplo. Por sua vez, da transcendência decorrem a espiritualidade, a religião, a fé, o subjetivismo, Vê-se assim, sumariamente, que a opção por um dos dois conceitos traz, como toda opção, uma série de consequências teóricas e práticas. Mas não esqueçamos que, desde que não radicalizadas, as duas noções podem até conviver sem maiores antagonismos. É o que ocorre com o cientista que crê em Deus, espécime no qual a imanência e a transcendência se abraçam sem remorso.
A segunda é Sujeito e Objeto. Aqui o que se quer opor é a pessoa humana e as coisas materiais. A prevalência de uma ou de outras. Não esquecer que para a lógica a coisa pode ser um sujeito (por exemplo: O sol é quente), mas não é disso que estou falando. Dar primazia ao sujeito e não ao objeto, ou seja, ao ser humano e não às demais coisas, tem implicações relevantes na ciência política e na sociedade, como podemos ver nas dicotomias seguintes. Quando a Constituição coloca a vida como principal direito dos homens, antecedendo todos os demais direitos, é porque dá preferência conceitual e filosófica ao sujeito e não ao objeto.
A terceira é Indivíduo e Massa. Isto é, a singularidade da pessoa oposta ao anonimato do coletivo. Se se valoriza o indivíduo enquanto tal, não se pode aceitar o totalitarismo que o anula e o dissolve na multidão de súditos. Se se escolhe a individualidade em contraposição ao coletivismo, não se pode abrir mão dos direitos individuais e da consequente liberdade que daí advém. O indivíduo é sempre um cidadão e não um súdito, um sujeito de direitos e não um servo (ou escravo). Entretanto, há que se lembrar a existência de situações em que o interesse público se impõe ao interesse puramente individual. Mas como exceção e não como regra.
A quarta é Liberdade e Igualdade. Esta oposição está presente no duelo entre liberalismo e socialismo, liberalismo e comunismo, liberalismo e estatismo, por exemplo. O que é mais importante: a liberdade do indivíduo ou a igualdade massificante dos súditos? Ter um pedaço de pão certo na escravidão ou uma incerta refeição na liberdade? São questões importantes e decisivas na vida pessoal e coletiva. Há quem nasceu para ser livre e há quem nasceu para não sê-lo.
A quinta, mas não última, é Cidadão e Estado. Esta dicotomia tem a ver com as anteriores, como pode facilmente perceber o leitor. É tão relevante quanto as outras, pois dela decorre a posição do homem e da mulher na sociedade organizada. Se o cidadão valer menos que o Estado, está aberto o caminho para a massificação totalitária e para a morte da liberdade. O Estado existe para servir ao cidadão e não o contrário. É simples assim.
Como sabe bem o leitor, a escolha entre tais dicotomias exige um mínimo de coerência. Pois o indivíduo, como sujeito de direitos oponíveis aos seus semelhantes e ao Estado, não pode admitir o súdito escravizado. Ou se é uma coisa ou se é outra. E daí resulta um mundo de efeitos.
Óbvio que esses conceitos dicotômicos comportam e até exigem abordagens profundas. Livros e livros foram escritos a respeito e a todos remeto o leitor. Mas aqui estamos – ou pretendemos estar – no espaço restrito da crônica, no qual uma inevitável superficialidade se impõe, até para não espantar quem a lê e que dela legitimamente espera alguma leveza. Que me perdoem, portanto, os muito doutos, contumazes consumidores de tratados.
Para concluir, como dito acima, essas oposições podem ser encaradas de forma radical ou não. Há situações em que é possível conciliá-las moderadamente. E é aqui onde entra a sabedoria de cada um. E a coragem de cada qual. Pois a moderação, ao contrário do que parece, muitas vezes é mais heroica que o extremismo.
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