Areia de pote
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Sérgio de Castro Pinto, chefe poético

Por: Francisco Gil Messias | 06/09/2024

Sérgio de Castro Pinto, chefe poético

Francisco Gil Messias

        gmessias@reitoria.ufpb.br


Na culinária, os chefes de cozinha costumam preferir o fogo brando ao forte para alcançar o cozimento perfeito das iguarias. Trata-se, logo se vê, de uma sabedoria lentamente apurada ao longo do tempo, através de experimentos mil, de erros e de acertos, ao fim dos quais se concluiu que sempre comem melhor os que não têm pressa. Foi nessa filosofia, talvez, que o nosso poeta Sérgio de Castro Pinto escolheu o inspirado título de seu livro mais recente: Brando fogo das palavras, Editora Patuá, São Paulo, 2024, belamente ilustrado por Flávio tavares.


Esse fogo brando pode significar muitas coisas, claro. Imaginar-lhe os sentidos é tarefa dos críticos e dos leitores, já que o autor não os revela, apenas insinua. E é bom que seja assim, pois qual seria a graça de se ter tudo previamente revelado? Na vida como na arte, não raro o não dito vale mais que o dito, e a mera insinuação é muita vez a chave da mais completa e consumada sedução. 


O poeta Castro Pinto, para além da já consagrada qualidade artesanal de seus poemas, é célebre pela economia de palavras. Nele, sabemos, o menos é mais, e se Gilberto Freyre fosse rotular as suas produções poéticas, talvez as chamasse de “magras”, para contrapô-las às “gordas” de um Augusto Frederico Schmidt, por exemplo. Com essa mesma antítese original, sabe-se, Freyre distinguiu as igrejas de Salvador (“gordas”) das de Recife (“magras”). Pois bem, é possível que essa boa “magreza” dos poemas de Sérgio, que tem tudo a ver com a elegância dos finos e não com a feia fome dos necessitados, resulte, de alguma forma, desse fogo brando de seu processo criativo, no qual as palavras vão de decantando, até restar nada mais que o puro sumo essencial. É uma hipótese que não exclui as demais.


Um aspecto do livro que não se pode olvidar é que sua publicação deu-se em tempos de viuvez do poeta. Uma sofrida viuvez, lembremos sempre. A presença (não a ausência) de Alda Lúcia paira soberana sobre o livro e o atravessa desde a dedicatória embebida de saudade. Alguns poemas, pela temática, vê-se logo que foram escritos após a grande perda; outros, não dá para saber exatamente, mas claramente remetem à  atmosfera geral da obra de 35/37 poemas, que é indisfarçavelmente melancólica, como não poderia deixar de ser, face as circunstâncias. A propósito, transcrevo a seguir o poema justamente intitulado viuvez: 



foram-se-me os teus dedos

e ficaram-me

os teus anéis sem serventia



Lapidar exemplo de concisão formal, como se vê. Outro exemplo dessa economia, mas agora sem o viés explícito da melancolia, está em a cigarra: 



cheia de si

a sina

da cigarra


é explodir



  É a marca personalíssima do poeta, desde o livro inaugural, lá se vão mais de cinquenta anos. A comprovação de que ele sempre pertenceu “à família exigente dos buriladores”, como disse do poeta mineiro Abgar Renault o crítico paulista Antonio Candido.


Essa sua contenção, todavia, é um pouco deixada de lado no poema jogo frugal, dedicado à companheira de sempre, em que o sentimento amoroso e a confissão assumem o protagonismo, explicitando um momento da intimidade do poeta que, o mais das vezes, costuma ocultar do leitor o seu eu lírico, pelo menos na medida em que isso é possível:


sapoti! sapoti! sapoti!

morcego! morcego! morcego!

amor cego por ti!

amor cego por ti!

amor cego por ti!


não escrevi à faca

o teu nome

no tronco do sapotizeiro,

mas na raiz.


na mais profunda raiz de mim mesmo.

   

Mas, sabemos, a força da vida é muito grande. E se a vitória final pertence inevitavelmente a Tânatos, Eros não se deixa vencer facilmente. E, como uma flor no asfalto, surge no livro de repente o poema recuerdos de mi juventud:


desabotoava a tua blusa?


não, desabotoava

    os teus seios

ainda em botão


e aprisionava-os

na palma das mãos.


Aprisionava-os?

não, dava-lhes

liberdade,

que a liberdade

dos seios

é sentirem-se presos


na concha das mãos.


E o poema alegria vem juntar-se a este como que para permitir que um tímido raio de luz  rompa a justificada sombra que paira  sobre a obra como um todo:


algaravia

de um viveiro


sem pássaros

prisioneiros


Nestes dois poemas, vemos que o poeta, à sua maneira, resiste à dor e ao pessimismo. É a pulsão vital falando mais alto, mesmo que baixinho, e prometendo que a vida seguirá, como costuma seguir, a despeito de tudo. E essa tácita promessa enche de esperança o coração dos fiéis leitores de Sérgio, na expectativa de que o grande poeta, ourives e chefe, continue a enriquecê-los com suas pequenas joias pacientemente trabalhadas ao brando fogo das palavras.     



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