Areia de pote
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A voluntária e bela despedida do poeta

Por: Francisco Gil Messias | 27/10/2024

A voluntária e bela despedida do poeta

Francisco Gil Messias

gmessias@reitoria.ufpb.br



A voluntária morte do poeta e filósofo Antonio Cícero, ocorrida na última quarta-feira, 23 de outubro de 2024, em Zurique, na Suíça, é daquelas que nos põem a pensar. Pois foi uma morte por eutanásia (suicídio assistido), escolhida e planejada, além de tranquila, ele segurando a mão do companheiro de vida até o fim. Uma bela morte, diriam os filósofos, pois reuniu no ato derradeiro consciência, domínio, aceitação e paz, ingredientes quase sempre difíceis de juntar. Daí a beleza da despedida desse carioca de 79 anos, autor de uma consistente obra poética e filosófica, que o levou, por merecimento, à Academia Brasileira de Letras, sem falar na consagração pela autoria de inúmeras letras de canções célebres de nossa música popular.


A fala mansa e baixa de Antonio Cícero, e sua total discrição, escondiam um dos grandes poetas e pensadores brasileiros dos últimos tempos. Mas esse certamente era um dos encantos de sua reservada personalidade, que não passava despercebido pelos mais atentos. Poder-se-ia talvez afirmar que ele foi uma presença silenciosa na vida de sua época, sem prejuízo de uma obra literária e intelectual que, sem dúvida, repercutiu nos melhores círculos da inteligência brasileira contemporânea. Um silêncio eloquente, o seu. Como que para equilibrar com o rock dançante de sua festejada irmã, a cantora Marina Lima.


Diagnosticado há pouco tempo com progressiva e irreversível enfermidade, ele logo tratou de  se informar a respeito da eutanásia (suicídio assistido), em clínica especializada da Suíça. Era a  lucidez do filósofo tomando a frente das iniciativas para a despedida final. Não queria ele chegar ao ponto de ser totalmente dominado pela cruel doença que lhe suprimiria as lembranças e as faculdades cognitivas, ferramentas indispensáveis ao poeta e ao filósofo. Ao invés de esperar a aniquilação em vida, preferiu antecipar a morte. Um fim não apenas escolhido, mas profundamente meditado, como conviria a alguém que erigiu o livre pensar em profissão e em maneira de ser e estar no mundo. 


79 anos. Um percurso suficiente para uma existência bem vivida, como a dele. Porque, sabemos, não é a extensão da vida que importa, mas sua qualidade, não no sentido dos prazeres e confortos fruídos, mas daquilo que fizemos e fazemos dela, individual e socialmente. Antonio Cícero construiu uma obra que possui virtudes para ficar. Escreveu poucos mas importantes livros de poemas, de reconhecida altitude literária, sem falar em seus ensaios filosóficos, que não conheço, mas imagino todos respeitáveis. Amou e foi amado, fez bons amigos, não cultivou a maldade e, dentro do possível, gozou a dimensão estética da vida em seus múltiplos aspectos. E, por último, morreu sem sofrer, do jeito e na hora que escolheu. Que mais se pode desejar?


Nele, acredito que não se conflitaram o poeta e o filósofo. A lírica e a fria razão. O sentimento e o pensamento. O voo criativo da poesia e os pés no chão da racionalidade. É possível encontrar em alguns (ou vários) de seus poemas a reflexão do filósofo, do pensador. Um de seus poemas mais conhecidos é “Guardar”, título de, se não me engano, seu último livro. Belíssimo, não vou reproduzi-lo aqui porque está sendo muito divulgado postumamente e não quero ser repetitivo. Em seu lugar, brindo o leitor com o poema “Desejo”, o qual dá uma ideia da poética ciceroniana:


“Só o desejo não passa

e só deseja o que passa

e passo meu tempo inteiro

enfrentando um só problema:


ao menos no meu poema

agarrar o passageiro.”


De fato, é este o ingrato trabalho de todo poeta: tentar agarrar no poema o passageiro, o que passa num fugidio instante, no mais das vezes despercebido pela multidão. E é exatamente isso que diferencia o poeta de seus semelhantes: essa capacidade - dom ou maldição - de perceber o que passa – e tentar retê-lo pela palavra. 


Antonio Cícero deixou uma carta de despedida e uma explicação. Diferentemente dos suicidas de que fala Manuel Bandeira. Como seria de esperar, são as palavras belas do poeta dispostas no lúcido recado do filósofo. Nenhuma pieguice, nenhum lamento lacrimoso. Apenas a constatação do inevitável, a justificativa de seu gesto e a saudade dos amados que ficam. Nenhum arrependimento e nenhuma expectativa. Tudo que resumiu no poema “Valeu”:


“Vida, valeu.

Não te repetirei jamais.”


Essa bela morte de Antonio Cícero lembra-nos a de Sócrates, por suas deliberação e  serenidade. Podemos dizer que seu adeus foi seu derradeiro poema e sua suprema declaração filosófica. O poeta filósofo partiu em paz.      

    


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