Tomás Camba, jovem angolano que reside no Brasil há 13 anos, fundou, em 2020, a Editora Quitanda, que já publicou mais de 60 títulos que abordam questões de espiritualidade, identidade, cultura e justiça social.
O Jornal de Angola entrevistou o editor, na sua última visita ao país, onde fala dos desafios do mercado editorial do Brasil e de Angola.
Como e quando surgiu a ideia de criar uma editora no Brasil?
A ideia de criar a Editora Quitanda nasceu em 2020, durante um momento de profunda reflexão sobre a necessidade de ampliar as vozes da literatura afro-brasileira e angolana, bem como a necessidade de uma
literatura contextual. Como jovem angolano, percebi que havia uma lacuna na publicação de obras que abordassem a nossa herança cultural, religiosa e social.
Ao mesmo tempo, via no Brasil um mercado com uma rica tradição literária, mas ainda carente de representações mais diversificadas e profundas das nossas narrativas. A Editora Quitanda surgiu como uma resposta a essa necessidade, com o objectivo de conectar essas culturas e oferecer ao leitor obras que transcendam
fronteiras.
A escolha do nome "Quitanda” tem algum significado especial para si?
O nome "Quitanda” foi escolhido de maneira deliberada, carregando um profundo simbolismo cultural. Eu queria uma palavra que representasse muito bem a cultura africana e a sua presença no Brasil. Na tradição angolana e brasileira, a quitanda é um espaço de encontro, diversidade e trocas. Assim como nas quitandas, onde se encontram os mais variados produtos, a Editora Quitanda é um lugar onde diversas vozes, histórias e perspectivas se encontram. O nome reflecte a nossa missão de ser um ponto de convergência de ideias e de fomentar o intercâmbio cultural entre Angola, Brasil e o mundo.
A editora Quitanda explora uma temática específica ou publica obras de todas as áreas da vida?
A Editora Quitanda destaca-se pelo seu compromisso em publicar obras que abordam temáticas essenciais e que, muitas vezes, são marginalizadas no mercado editorial. O nosso foco principal tem sido dar voz a autores que exploram questões de espiritualidade, identidade, cultura e justiça social. Publicamos obras que dialogam com temas como a religião, especialmente a partir de uma perspectiva que valoriza o protagonismo negro e a sua cultural. No entanto, não nos limitamos a um único tema. Buscamos sempre obras que promovam a reflexão e o entendimento profundo das realidades humanas, e sempre de forma contextual.
Quantos livros já publicou até ao momento?
Até ao momento, a Editora Quitanda publicou uma série de títulos que reflectem a nossa missão editorial. No total, são mais de 60 obras publicadas, cada uma cuidadosamente seleccionada para enriquecer o cenário literário com novas perspectivas. Estes livros não apenas foram bem recebidos pelo público, mas também provocaram discussões importantes sobre sociedade, cultura e fé.
Dos publicados, quais são os que venderam o maior número de exemplares?
Entre as obras publicadas, destacam-se "O Estigma da Cor", "Pandita Ramabai: Uma Voz em Prol das Mulheres Vulneráveis, "Martin Luther King Jr. Revistado”, "Quão africano é o cristianismo”, "Autismo e Fé: Os dons da neurodiversidade” e "Geração Selfie: Conheça os comportamentos dos nativos digitais”. As histórias tocantes e as abordagens reflexivas fizeram com que se tornassem favoritos, não apenas no Brasil, mas também entre leitores internacionais, tendo inclusive sido notícia em programas de TV como o "Conversa com Bial”, da TV Globo.
Quais são as particularidades do mercado editorial brasileiro?
O mercado editorial brasileiro é vasto e diverso, com um público que valoriza tanto a tradição literária quanto às novas vozes emergentes.
Uma das particularidades mais marcantes é a crescente demanda por literatura que represente a diversidade cultural e social do país. No entanto, o mercado é, também, altamente competitivo e enfrenta desafios como a crise económica e as mudanças nos hábitos de leitura. As editoras precisam de ser inovadoras, estratégicas e profundamente conectadas com os seus públicos para prosperar.
Que implicações isso tem?
Essa realidade exige uma abordagem editorial que seja, ao mesmo tempo, acessível e de alta qualidade, características que a Editora Quitanda se esforça para incorporar em cada um dos seus projectos.
Como é que conseguiu se firmar num mercado tão competitivo como o brasileiro?
Firmar-se no mercado editorial brasileiro exigiu uma combinação de visão estratégica e compromisso com a qualidade e inovação. De modo estratégico, percebemos que existem poucas editoras a publicar conteúdos sobre africanidade, espiritualidade e contemporaneidade. Então, resolvemos olhar para essa procura como um problema a ser resolvido, sendo assim, nos distanciamos da concorrência, porque não estávamos a "brigar” pelo mesmo público, pois, o nosso era diferente.
A qualidade do material usado também teve alguma influência?
Sim. Apostamos, também, na qualidade do material. Os nossos livros são feitos com papel seleccionado e de boa qualidade, na sua maioria com certificação de matéria amiga do meio ambiente, isto, associado ao design de qualidade, ajudou-nos a tornar o livro num objecto de desejo e não apenas como um objecto de leitura. Geralmente, quando as pessoas seguram algum dos nossos livros em mãos elas exclamam: Uau! Que livro bonito! Esse é o espanto quase unânime entre aqueles que têm encontros com os nossos livros.
Que outras componentes terão contribuído para essa vossa afirmação?
A Inovação tem sido outro diferencial. Por sermos uma editora jovem e com muitos funcionários jovens, estamos sempre atentas às mudanças do mundo. O nosso catálogo é composto por audiobooks e e-books, pois, acreditamos no formato dinâmico do livro. É importante ressaltar que o livro nunca vai morrer, mas o formato pode mudar e nós, como profissionais do livro, precisamos de nos adaptar urgentemente a essa realidade.
Quais são os principais desafios que tem enfrentado?
Os desafios enfrentados são diversos e incluem desde a adaptação às rápidas mudanças no mercado editorial até à superação das barreiras económicas que afectam o poder de compra dos leitores. No entanto, um dos desafios mais significativos tem sido manter o equilíbrio entre a missão da editora e a sustentabilidade financeira. Outro desafio constante é a necessidade de inovar na forma como nos comunicamos com os nossos leitores, especialmente num mundo cada vez mais digital.
Apesar desses desafios, a Editora Quitanda tem conseguido avançar, sempre focada na sua missão de transformar vidas através da literatura.
Tem vínculos com autores ou editoras angolanas para a publicação das suas obras?
Sim, mantemos vínculos com autores angolanos e estamos em constante diálogo com autores locais para fortalecer a presença da literatura angolana tanto no Brasil quanto internacionalmente. Acreditamos na importância de construir pontes entre Angola e o Brasil, e esse intercâmbio literário é fundamental para enriquecer o panorama cultural de ambos os países. A Editora Quitanda está comprometida em promover e divulgar obras que reflectem as experiências, a cultura e a espiritualidade angolanas.
Como a sua experiência no Brasil pode ser útil para Angola?
A minha experiência no Brasil oferece lições valiosas que podem ser aplicadas ao contexto angolano, especialmente em termos de inovação editorial e de construção de um mercado literário mais maduro.
Acredito que Angola tem um potencial imenso, e a minha actuação no Brasil permitiu-me compreender a importância de adaptar estratégias de mercado para atender às necessidades locais. Com essa experiência, estou capacitado para contribuir na formação de um mercado editorial angolano que valorize e promova novas vozes e, ao mesmo tempo, seja economicamente sustentável.
O que tem a dizer sobre o mercado editorial do nosso país?
O mercado editorial em Angola está numa fase de crescimento e transformação. Há uma demanda crescente por literatura que reflecte a identidade e a cultura angolana, mas, também, é preciso reconhecer os desafios, como a falta de infra-estrutura editorial e a necessidade de políticas públicas que incentivem a leitura e a produção literária.
Acredito que, com investimentos estratégicos e um compromisso com a formação de novos talentos, Angola tem o potencial de se tornar um pólo literário vibrante, capaz de dialogar com o mundo inteiro.
Sei que durante a sua estada aqui no país manteve contactos com algumas publicações locais. Pode falar sobre isso?
Durante as minhas estadas em Angola, tenho-me dedicado intensamente a fortalecer o mercado literário local. Um dos principais focos tem sido a mentoria de novos autores, ajudando-os a desenvolver as suas obras e a encontrar as suas vozes únicas no cenário literário. Temos, também, lançado diversos autores angolanos sob o selo da Editora Quitanda, dando-lhes uma plataforma para que as suas histórias alcancem um público mais amplo, tanto em Angola quanto internacionalmente.
Além disso, a Editora Quitanda está profundamente envolvida em iniciativas sociais, como o Projecto DAVI (Dignidade, Amor, Vida e Infância), que actua no bairro dos Mulenvos, em Luanda. Através deste projecto, trabalhamos com mais de 200 crianças, oferecendo não apenas acesso à educação e alimentação, mas também oportunidades para que elas se conectem com a literatura, incentivando a leitura desde cedo.
A agenda não inclui a distribuição dos vossos livros?
Estamos também focados em expandir a distribuição dos nossos livros em Angola, através de parcerias estratégicas com livrarias locais, garantindo que as obras publicadas pela Quitanda estejam ao alcance de todos. Além disso, estamos a desenvolver uma plataforma inovadora que permitirá aos autores angolanos disponibilizarem as suas obras directamente na Amazon, ampliando assim a sua visibilidade e alcance no cenário internacional. Acreditamos profundamente que os livros têm o poder de transformar realidades, e é por isso que estamos cada vez mais comprometidos em disseminar a literatura em Angola, promovendo a leitura e a produção literária no país.
Antes de abraçar esta actividade, publicou alguns livros da sua autoria. Pode falar sobre isso?
Certamente. Antes de fundar a Editora Quitanda, publiquei o livro "Terceirização da Fé", que aborda a tendência moderna de delegar a responsabilidade espiritual e as implicações disso para a vida cristã.
Este livro foi uma obra de reflexão profunda, com o objectivo de provocar os leitores a reassumirem as suas responsabilidades espirituais de forma autêntica e pessoal.
Além disso, participei como coautor do livro "O Evangelho da Paz e Discurso de Ódio", que examina a complexa relação entre as mensagens de paz do Evangelho e a retórica de ódio que muitas vezes se infiltra em discursos religiosos. Este trabalho foi uma oportunidade de contribuir para um debate essencial sobre como a fé pode ser vivida de maneira que promova a reconciliação e a paz, em vez de divisões.
Paralelamente, também publiquei artigos académicos que foram indexados em instituições de prestígio como Harvard, MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussets) e Chicago, todos dos Estados Unidos.
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