Trump trai o Ocidente. Os Estados Unidos não representam mais o mundo livre
por Catarina Rochamonte (O Antagonista)
O presidente americano, Donald Trump, recebeu o presidente ucraniano Volodymir Zelensky na Casa Branca na sexta-feira, 28 de fevereiro, para uma reunião que acabou saindo do controle, terminando em aberta animosidade e se transformando em um incidente diplomático sem precedentes.
A ida de Zelensky à Casa Branca foi possível graças ao esforço do presidente francês, Emmanuel Macron, que se esforçou nos últimos dias para tentar mitigar os danos do claro alinhamento de Trump com o ditador russo, Vladimir Putin, com quem Trump parece querer dividir as terras raras do país invadido.
A reunião com o presidente ucraniano era uma última tentativa, quase desesperada, de conseguir, pelo menos, alguma garantia de segurança para a Ucrânia após o acordo de cessar-fogo que os Estados Unidos começaram a negociar diretamente com a Rússia, rifando a parte envolvida e agredida: a Ucrânia.
Don Trump, o poderoso chefão
Trump exige o acesso aos recursos minerais ucranianos em troca de nada. Segundo Trump, a Ucrânia deve abrir mão de seus territórios, abdicar da pretensão de se juntar à Otan, descartar a expectativa de uma força de proteção para garantir o cessar-fogo, desmantelar seu exército e ainda agradecer servilmente aos Estados Unidos por intermediarem sua rendição.
Em meio à enxurrada de comentários que se espalharam nas redes sociais após o descalabro diplomático no Salão Oval, colhi o seguinte: “Zelensky não precisava da ajuda de Trump para dar a Putin quatro regiões, reduzir o exército e abandonar as aspirações à Otan. Se ele quisesse se render a Putin, teria ido para Moscou não para Washington.”
Zelensky foi a Washington tentar negociar ajuda para uma paz justa, mas ocupando o cargo de presidente e vice-presidente não encontrou americanos que minimamente fizessem jus à tradição política daquela grande nação, senão dois bufões caprichosos sem princípios ansiosos por humilhá-lo e extorquir as riquezas do seu país.
Não é à toa que Donald Trump tem sido comparado ultimamente a Don Vito Corleone, o grande mafioso do filme O poderoso chefão:
“Não é problema os EUA pedirem acesso preferencial para nossas empresas a investimentos nos recursos naturais da Ucrânia após a guerra, enquanto um agradecimento por nossa ajuda. Mas fazer isso neste momento, e sem garantias de segurança em troca? Don Corleone ficaria envergonhado de pedir algo assim. Mas Don Trump, não”, escreveu Thomas Friedman no The New York Time.
A revista The Economist trouxe uma capa com a mesma analogia: na imagem, Trump caminha poucos passos à frente de Putin, Xi Jinping e outros líderes autocráticos; no canto, a legenda explicativa: “The Don´s new world order”.
A publicação marcava, com essa imagem, a nova ordem mundial que já se desenhava antes da grosseria com Zelensky no Salão Oval, ato mais recente da peça tragicômica que se desenrola na diplomacia americana desde a posse de Don Trump.
De costas para o mundo livre
Os Estados Unidos travaram na sexta-feira, 21 de fevereiro, uma declaração elaborada pelo G7 para marcar os três anos da invasão à Ucrânia. Por se recusarem a chamar a Rússia de agressora, os representantes americanos revisaram o primeiro rascunho e removeram todas as referências que poderiam ser interpretadas como pró-Ucrânia, resultando em uma declaração neutra, que não fez referências à Rússia como invasora, nem à Ucrânia como vítima da invasão.
Tal alinhamento diplomático com a Rússia na ONU ocorreu imediatamente após a disputa verbal entre Zelensky e Trump, que começou depois que os Estados Unidos convidaram a Rússia e não a Ucrânia para as negociações de paz. Trump chamou Zelensky de “ditador sem eleições” e insinuou que ele era o responsável pela guerra, ao que Zelensky respondeu dizendo que Trump vivia em uma bolha de desinformação russa.
Como comentário acerca da vergonhosa cena protagonizada por Donald Trump e J.D.Vance no Salão Oval da Casa Branca, a ex-deputada pelo partido Republicano, Liz Cheney, escreveu o seguinte:
“Gerações de patriotas americanos, da nossa revolução em diante, lutaram pelos princípios que Zelensky está arriscando sua vida para defender. Mas hoje, Donald Trump e JD Vance atacaram Zelensky e o pressionaram a entregar a liberdade de seu povo ao criminoso da KGB que invadiu a Ucrânia. A história se lembrará desse dia – quando um presidente e vice-presidente americanos abandonaram tudo o que defendemos.”
Essa é a realidade que o mundo precisa agora encarar, uma nova ordem na qual os Estados Unidos deram as costas para o mundo livre e as mãos para um criminoso de guerra que ameaça o Ocidente.
Putin: amor e ódio
No salão oval, de frente para Zelensky, Trump simplesmente tomou as dores do psicopata do Kremlin:
“Deixe-me dizer, Putin passou por muita coisa comigo. Ele passou por uma falsa caça às bruxas onde eles o usaram e a Rússia, Rússia, Rússia contra mim. Ele foi acusado de todas essas coisas com as quais não teve nada a ver. Ele foi acusado de inventar o laptop de Hunter Biden... Foi tudo uma farsa, e ele teve que aturar isso. Putin pode ter quebrado acordos com Obama e Bush, e Biden, mas ele nunca quebrou acordos comigo. Ele quer fazer um acordo.”
O presidente dos Estados Unidos da América também acusou Zelensky, presidente de um país invadido e devastado de ter muito ódio no coração contra aquele que lidera essa destruição. Putin, por outro lado, teria um coração magnânimo, incapaz de tal sentimento:
“Veja, o ódio que ele tem por Putin", disse Trump, apontando para Zelensky, "É muito difícil para mim fazer um acordo com esse tipo de ódio. Ele tem um ódio enorme, o que eu posso entender, mas posso dizer que o outro lado também não o carrega em seus corações."
Zelensky então tomou a palavra e lembrou "Ele ocupou grandes partes da Ucrânia desde 2014. Ninguém o impediu. Assinei um acordo com ele em 2019, mas ele quebrou o cessar-fogo. Ele matou nosso povo."
O vice presidente, JD Vance, interveio então para confrontar Zelensky, escalando a discussão, muito provavelmente de forma premeditada, a fim de facilitar a difusão da narrativa (bastante disseminada nas redes sociais) de que o presidente da Ucrânia havia sido desrespeitoso como os Estados Unidos.
Inúmeros perfis trumpistas, no X, fizeram postagens colocando a questão nos seguintes termos: ou você está com Zelensky ou você está com os Estados Unidos da América. O dono do X, Elon Musk, também vem ecoando como nunca as postagens difamatórias contra o presidente da Ucrânia.
Tudo isso é um tanto assustador, surreal e distópico, mas o fato é que o tabuleiro da geopolítica está transformado, com consequências imprevisíveis, talvez catastróficas.
Está agora cristalino para os europeus que os Estados Unidos, sob Trump e Vance, estão se lixando para a segurança deles e que não ajudarão nem ucranianos nem europeus que ficarem sob fogo russo.
Trump não leu Kant
Trump quer repartir o mundo com os poderosos mafiosos das facções rivais. Essa é a paz que ele quer: a paz do reinado do crime, da subjugação do mais fraco pelo mais forte, não a paz justa entre nações livres, não a paz resultante de uma ordem legal na qual os estados são internamente republicanos e respeitam externamente os direitos de todos os outros estados, como apregoara o filósofo Immanuel Kant no livro À paz perpétua.
Em À paz perpétua, um esboço filosófico, Kant afirma que quem for atacado pode se defender e não deve ser forçado a concordar com uma paz que o agressor conclui com a má intenção de retomar a guerra na primeira oportunidade conveniente.
Na primeira seção da referida obra, Kant descreve algumas condições que são impeditivos da paz. Os dois artigos preliminares citados pelo filósofo de Königsberg são:
1 - "Nenhum tratado de paz deverá ser considerado válido se for feito com reservas secretas que possam conter a semente de uma guerra futura."
2 - "Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, tanto faz) deverá ser adquirido por outro Estado, seja por herança, troca, compra ou doação."
Bem se vê que Trump não é nada kantiano e que a paz que ele diz buscar não terá nada de perpétua.
Aliás, é sintomático e dá o que pensar o fato de que Königsberg, a cidade natal do admirável filósofo, que fazia parte da Prússia Oriental e pertencia à Alemanha até o fim da Segunda Guerra Mundial esteja hoje localizada na Rússia e se chame Kaliningrado. Soa um mau agouro.
A megalomania despótica dos líderes russos - sejam eles czares, comunistas ou ex-agentes da KGB que conquistaram o poder e o mantém envenenando adversários ou empurrando-os janela abaixo - é incompatível com o republicanismo probo defendido pela tradição liberal iluminista.
Kant almejava uma paz construída pela força da razão; Trump almeja a paz construída pelos ditadores, que dividirão entre si as esferas de influência das nações por eles subjugadas.
Parece evidente que Putin não se contentará em simplesmente congelar a guerra, mas exigirá maiores concessões territoriais, amplo desarmamento do exército ucraniano, além de uma mudança de governo em Kiev que coloque no lugar de Zelensky alguém servil ao Kremlin.
Trump age como um colaboracionista russo trabalhando para uma falsa paz que criará um vácuo de segurança e permitirá a Putin atacar novamente a qualquer momento.
Ideologicamente a guerra dos ucranianos contra os russos é uma guerra pela liberdade, pela dignidade e pelos princípios da civilização. Donald Trump, D.J Vance e seus capachos estão do outro lado.
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