FLANELINHA
João Batista de Brito
Acho que vocês lembram aquele estacionamento de carros que ficava entre o Edifício Sto Antônio e o Centro Turístico, em Tambaú. Na época, até anos noventa, a área para estacionar era bem mais ampla que a de hoje, e era lá que deixava meu carro, quando ia ao Cinema Tambaú, ou tomar umas cervejas no Chope da Praia, ou para outro programa nas redondezas.
Quem tomava conta dos carros era uma mulher alourada, muito simpática e ciente de seu serviço, flanela no ombro e sorriso na boca. Sua idade nunca soube, talvez uns quarenta e cinco, mas, maltratada pela vida, aparentava um pouco mais.
De tanto usar o estacionamento, fiz amizade com ela, e quando tinha, sempre lhe dava uma gorjetinha acima da média, e dela recebia um sorriso largo, que lhe acentuava as rugas e lhe mostrava os dentes cariados.
Pois uma certa noite de pouco movimento, voltando mais cedo do Cine Tambaú, onde vira uma reprise de “A Estrada da Vida” (Fellini, 1954) me bateu a curiosidade e lhe perguntei onde morava. Oitizeiro, respondeu, e foi me relatando detalhes de sua vida pessoal. Morava num casebre com um filho que lhe dava muito trabalho. O rapaz era doentinho do juízo, e, para vir trabalhar, ela o deixava aos cuidados de uma vizinha caridosa. E foi me contando seu dia a dia, uma luta sem fim.
Indaguei sobre sua origem e fiquei sabendo que era nascida em Campina Grande, onde morou até seus vinte e poucos anos. Fiquei surpreso em saber que tinha o curso secundário completo e que fora aluna no respeitado Colégio Estadual da Prata. Aliás, fato confirmado pela sua linguagem correta, sem os erros de gramática habituais entre o pessoal mais humilde.
Mas vinha mais surpresa pela frente.
De repente, ela me perguntou se eu conhecia a Professora Elizabeth Marinheiro. Sim, claro que conhecia, é minha amiga, lhe disse. E aí ela foi contando que, ao tempo em que era aluna na Prata, anos sessenta, fez parte do grupo de teatro organizado pela Profa Elizabeth, e que, junto com Elba Ramalho e tantas outras alunas, atuou em alguns espetáculos no Teatro Severino Cabral.
Ora, nos anos sessenta minha noiva morava em Campina e eu sempre visitava a Rainha da Borborema. Contei-lhe que fui, uma noite, assistir a um dos dramas encenados pela Profa Elizabeth, espetáculo muito bonito, cheio de cores, dança e música. E ela: então o senhor me viu no palco!
Tomado pela curiosidade, quis saber o resto da história, o que havia ocorrido, como se explicava a situação atual.
A história era longa, cheia de detalhes que me escapam, aliás, contados em pedaços, entre um atendimento aos fregueses do estacionamento e outro.
Findo o Curso Secundário e as atividades culturais com a professora Elizabeth, as alunas tomaram, cada uma, seu rumo, a maior parte fazendo vestibular para Letras, Pedagogia, Psicologia, etc. A exceção teria sido mesmo Elba Ramalho que, de voz privilegiada, investiu numa carreira artística.
Quanto a ela, foi, para sobreviver, trabalhar no comércio, e, cuidando da mãe viúva e doente, não teve chance de prosseguir com os estudos. Para piorar, tempos depois, envolveu-se com uma figura deletéria, e casou, mesmo contra a vontade da mãe. Quando o casamento deu em nada, a mãe havia falecido, e ela, sem eira nem beira, a não ser uma indesejada barriga, veio morar com uma amiga em João Pessoa. Depois de a criança nascida, os desentendimentos com a amiga apareceram, e cresceram, de tal modo que ela preferiu ir viver sozinha, e cuidar do filho, como dito, uma criatura sem saúde. Emprego catou daqui e dali, mas, com o filho dependente, as chances eram nulas.
O resto, nem precisava dizer, era fácil deduzir.
Depois daquela narrativa, e por algum tempo, fiquei olhando a minha flanelinha com outros olhos; de repente, ela tinha virado uma figura meio simbólica, tristemente simbólica, de quê, não sei.
Uma certa noite, deixei meu carro no estacionamento, e ela não estava. O rapaz que me atendeu não dava notícia.
E nunca mais a vi.
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