A voz segregada pela crítica nos anos de chumbo encontra eco no presente, mostrando que a luta por justiça e afeto permanece central
Publicado 22/09/2025 14:56 | Editado 22/09/2025 16:04
Se os acasos da estrada não o tivessem levado tão cedo, em 1991, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior completaria, hoje, 80 anos em um Brasil que ele reconheceria com estranha familiaridade. O compositor que fundiu afeto e luta com a maestria de quem sabe que um não vive sem o outro estaria, muito provavelmente, no centro do palco da resistência. Assim como há décadas, quando sua voz ecoava contra a ditadura militar, é fácil imaginar Gonzaguinha hoje ao lado do povo, nas ruas, cantando para afugentar os fantasmas golpistas que insistem em assombrar o país.
A ressignificação do “cantor-rancor”
A imagem do “cantor-rancor”, uma alcunha cruel cunhada por uma crítica que não soube digerir sua aspereza engajada, foi devidamente ressignificada pelo tempo. Só quando Gonzaguinha incorporou a temática do amor e do otimismo, tornou-se Maisa palatável para a crítica, que dimensou seu talento poético de forma mais adequada.
Os filhos, como Daniel Gonzaga e Amora Pêra, e companheiras de vida e arte, como Sandra Pêra e Simone, insistem: por trás da carranca necessária para enfrentar os anos de chumbo, havia um homem de doçura profunda. “Ele não era só aquela capa. Era uma pessoa também suave, mas profunda”, diz Sandra.
Essa dualidade não era contraditória; era humana. E é precisamente essa humanidade complexa que faz de sua obra um espelho tão atual.
Gonzaguinha tinha 19 anos quando ocorreu o golpe de 1964 e já escrevia suas primeiras letras, ganhando os festivais nos anos 1970. Foi justamente no início daquela década que, junto com nomes como Aldir Blanc e Ivan Lins, fundaram o Movimento Artístico Universitário (MAU). Na ocasião, como estudante de economia, das 72 músicas apresentadas à censura, 54 sofreram algum tipo de intervenção. Comportamento Geral foi proibida de ser executada, com sua crítica aos que se mantinham neutros em relação ao governo militar. Mas não vetada a comercialização, o que lhe rendeu seu primeiro sucesso em 1973.
Do ontem de chumbo ao hoje de tensão
Nos anos 1970, Gonzaguinha era segregado por uma parcela da mídia. Seus três primeiros álbuns soavam “carrancudos” porque eram o retrato fiel da tensão entranhada naquele Brasil sangrento. Ele era inconveniente. Cantava o que muitos não queriam ouvir, com a urgência de quem sabia que o silêncio era cúmplice.
Hoje, as tentativas golpistas e as condenações judiciais a militares envolvidos em atos antidemocráticos criam um novo campo de batalha. O “rancor” de Gonzaguinha, na verdade, era um grito de alerta – e esse grito encontra seu paralelo na voz das multidões que, mesmo sob a dominância de uma extrema-direita ruidosa, apostam na democracia. Sua música prova que a luta pela liberdade é um ciclo que se renova.
A agenda que segue urgente
A obra de Gonzaguinha é um território onde a luta política e a vulnerabilidade afetiva se abraçam. Em “Comportamento geral” e “Geraldinos e Arquibaldos”, ele esmiuçava as engrenagens da opressão social. Mas sua visão era profundamente avançada. Em “Ponto de interrogação”, décadas antes do empoderamento feminino no funk e no rap, questionava o machismo na sexualidade. Em “Ser, fazer e acontecer”, desafiava a “dona moral” que cerceava a liberdade das mulheres. Esta não é uma agenda do passado; é a pauta do presente, mostrando como o artista antevia debates que só ganhariam força no século 21.
O amor como ato político
Foi quando aumentou a dose de amor, sem jamais abandonar a politização, que Gonzaguinha conquistou o grande público e as maiores intérpretes do país. “Explode coração”, nas cordas de Maria Bethânia, era uma canção de protesto que o povo abraçou como hino de amor e êxtase. “E que essa vida entre assim/Como se fosse o Sol desvirginando a madrugada/Quero sentir a dor dessa manhã”, dizia ele, naqueles dias que apontavam para o alvorecer doloroso da democracia.
“O que é, o que é?” virou um credo pela simples alegria de existir. “Sangrando”, na voz de Simone, e “Redescobrir”, na potência de Elis Regina, mostravam que a dor e a esperança são dois lados da mesma moeda. Letras inspiradas que se encaixavam com sofisticação nas melodias complexas e raras do compositor.
Como define a cantora Bruna Caram, que lançou o álbum “Afeto e Luta”: “Só se luta quando se acredita em algo. As canções políticas também têm afeto”.
Mas não se engane, se acha que sua música começou áspera e foi se aveludando com a abertura do regime militar para a transição para a democracia. “Quando eu soltar a minha voz/Por favor entenda/Que palavra por palavra/Eis aqui uma pessoa se entregando/Coração na boca/Peito aberto/Vou sangrando/São as lutas dessa nossa vida/Que eu estou cantando”.
Um legado que pulsa nos palcos e na rua
Essa herança pulsa hoje, gerenciada pela editora Moleque, sob os cuidados de Daniel Gonzaga, que afirma: o pai “está mais vivo do que muitos artistas vivos”. Num mundo cada vez mais aterrador com seus genocídios normalizados, mentiras públicas e aceitas, questionamentos à eficiência econômica da democracia e aceitação tácita do glamour ostentação dos artistas, cada vez se ouve menos artistas dispostos a enfrentar os calafrios do tempo que se vive por um triz.
O ano de Gonzaguinha 80 traz a atualidade de sua poesia. De Bruna Caram a Sandra Pêra – que acaba de gravar “Eu apenas queria que você soubesse”, com escolhas pessoais como a canção-título, que ouviu a caminho da sala de parto –, passando por Daniel, que revisita o “Gonzaguinha Paralelo B” (as joias menos óbvias), e por Sombrinha, que lembra do companheiro de Riocentro, a obra do compositor é constantemente revitalizada. São projetos que fogem do óbvio para reafirmar a profundidade de um cancioneiro que não se esgota.
A voz que continua na esquina
Oito décadas após seu nascimento, Gonzaguinha permanece como a voz que falta na esquina. Uma voz que lembra, em “Recado” – “Se me der um grito não calo/ Se mandar calar mais eu falo” –, a necessidade de não se silenciar ante as ameaças. Uma voz que celebra a vida com ferocidade, num momento que tenta impor sombras.
Se antes a luta era contra a ditadura declarada, hoje é pela preservação da democracia conquistada. E, como ele bem sabia, só se luta com tanta paixão quando há um afeto profundo pelo que se defende.
O coração do povo, que ontem explodia de medo e hoje explode de esperança, continua cantando Gonzaguinha. Porque sua música é, acima de tudo, a crônica inacabada de um Brasil que insiste em ser afetuoso e, por isso, permanentemente em luta.
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