Publicado em 1 de abril de 2024 por Tribuna da Internet
Pedro Doria
O Globo
O golpe de 1964 não é passado. Não é um ponto distante na História, que olhamos com aquele enfado escolar com que se acompanham o Descobrimento ou os Bandeirantes. A ditadura que nasceu na madrugada daquele 2 de abril, quando um senador solitário tornou vaga a Presidência, está ainda viva e pulsando, hoje, no Brasil. Está nas ruas.
Não faz nem dois anos, quatro generais de Exército e um almirante de esquadra se sentiram confortáveis o suficiente para planejar um novo golpe militar. Fizeram isso enquanto milhares de brasileiros acampavam na frente dos quartéis pedindo assim: um golpe que impedisse o candidato eleito de assumir a Presidência. Pois aquele presidente, nosso atual presidente, inacreditavelmente decidiu que o governo não deve lembrar o golpe. Lula não entendeu nada.
EXEMPLOS PRÓXIMOS – No auge da crise econômica argentina, não se viu movimentação nas Forças Armadas do país. Os militares tampouco se mexeram quando o Chile encheu as ruas de gente em protestos violentos.
Não é por acidente. O general Jorge Rafael Videla morreu com diarreia, no vaso sanitário de sua cela, e não há general argentino que não saiba disso. Os chilenos viram o general Augusto Pinochet passar seus últimos anos fugindo de um mandado de prisão, humilhado, alquebrado numa cadeira de rodas.
Até os paraguaios se lembram do general Alfredo Stroessner com o asco que merece o pedófilo que foi. Nós escolhemos, ativamente, não lembrar. Vivemos hoje as consequências disso.
CAUDILHISMO REGIONAL – O histórico de intervenções militares não é só nosso — é regional. Ruy Barbosa passou a última década de vida alertando sobre o risco de o caudilhismo deles contaminar nosso país. E, por caudilhismo, entenda-se o que ele é: disputa política de chefes militares. Gente que anda com uniforme e lidera tropas.
Se no século XIX não eram exércitos regulares, no século XX se tornaram. A diferença é que nossos vizinhos todos se curaram do grande mal político que manchou a América do Sul. Nós é que não.
Alguns acham que a diferença foi a Justiça. Mas não é essa a diferença. O que argentinos e chilenos, nossos vizinhos mais comparáveis, fizeram foi um exercício ativo de lembrança. Esta é talvez a maior lição política do século XX: lembrar faz diferença. Aprendemos isso na forma como escolhemos lidar com o Holocausto.
LEMBRAR É PRECISO – Da Praça de Maio sempre com suas mães, hoje já bisavós, com o lenço branco. Do Museu da Memória e dos Direitos Humanos que toda criança chilena visita em Santiago. A lembrança do que foi a ditadura é um esforço cívico e um dever do Estado.
Todo 31 de março é a mesma coisa. Passamos semanas discutindo se os quartéis celebrarão a instauração da ditadura. Ainda hoje as Forças Armadas não tratam o que fizeram pelo que foi: um golpe de Estado. A ruptura da Constituição. A interrupção da democracia e a instauração de uma ditadura.
Se eles se sentem à vontade para tratar a violência que impuseram ao país como algo heroico, é porque o Estado brasileiro não tem posição oficial a respeito.
O ESTADO CONCORDA – Se um general pode subir ao microfone e elogiar um golpe, se ele pode discutir a interpretação da História, é porque o Estado concorda que há debate. As Forças Armadas são do Estado. E chegamos ao ponto em que o presidente da República, mesmo vítima de uma nova tentativa de golpe, escolhe não lembrar.
A escolha de não lembrar, a escolha de não tratar com clareza a coisa pelo nome, é o que faz acontecer de novo. Como aconteceu.
No domingo, o golpe fez 60 anos. Sua sombra continuará pendendo sobre nós enquanto o Estado brasileiro não disser com clareza o que é democracia, o que é ditadura e onde é o lugar do militar na política. (Fora dela.) Já vimos que não será o atual presidente.Pedro Doria
O Globo
O golpe de 1964 não é passado. Não é um ponto distante na História, que olhamos com aquele enfado escolar com que se acompanham o Descobrimento ou os Bandeirantes. A ditadura que nasceu na madrugada daquele 2 de abril, quando um senador solitário tornou vaga a Presidência, está ainda viva e pulsando, hoje, no Brasil. Está nas ruas.
Não faz nem dois anos, quatro generais de Exército e um almirante de esquadra se sentiram confortáveis o suficiente para planejar um novo golpe militar. Fizeram isso enquanto milhares de brasileiros acampavam na frente dos quartéis pedindo assim: um golpe que impedisse o candidato eleito de assumir a Presidência. Pois aquele presidente, nosso atual presidente, inacreditavelmente decidiu que o governo não deve lembrar o golpe. Lula não entendeu nada.
EXEMPLOS PRÓXIMOS – No auge da crise econômica argentina, não se viu movimentação nas Forças Armadas do país. Os militares tampouco se mexeram quando o Chile encheu as ruas de gente em protestos violentos.
Não é por acidente. O general Jorge Rafael Videla morreu com diarreia, no vaso sanitário de sua cela, e não há general argentino que não saiba disso. Os chilenos viram o general Augusto Pinochet passar seus últimos anos fugindo de um mandado de prisão, humilhado, alquebrado numa cadeira de rodas.
Até os paraguaios se lembram do general Alfredo Stroessner com o asco que merece o pedófilo que foi. Nós escolhemos, ativamente, não lembrar. Vivemos hoje as consequências disso.
CAUDILHISMO REGIONAL – O histórico de intervenções militares não é só nosso — é regional. Ruy Barbosa passou a última década de vida alertando sobre o risco de o caudilhismo deles contaminar nosso país. E, por caudilhismo, entenda-se o que ele é: disputa política de chefes militares. Gente que anda com uniforme e lidera tropas.
Se no século XIX não eram exércitos regulares, no século XX se tornaram. A diferença é que nossos vizinhos todos se curaram do grande mal político que manchou a América do Sul. Nós é que não.
Alguns acham que a diferença foi a Justiça. Mas não é essa a diferença. O que argentinos e chilenos, nossos vizinhos mais comparáveis, fizeram foi um exercício ativo de lembrança. Esta é talvez a maior lição política do século XX: lembrar faz diferença. Aprendemos isso na forma como escolhemos lidar com o Holocausto.
LEMBRAR É PRECISO – Da Praça de Maio sempre com suas mães, hoje já bisavós, com o lenço branco. Do Museu da Memória e dos Direitos Humanos que toda criança chilena visita em Santiago. A lembrança do que foi a ditadura é um esforço cívico e um dever do Estado.
Todo 31 de março é a mesma coisa. Passamos semanas discutindo se os quartéis celebrarão a instauração da ditadura. Ainda hoje as Forças Armadas não tratam o que fizeram pelo que foi: um golpe de Estado. A ruptura da Constituição. A interrupção da democracia e a instauração de uma ditadura.
Se eles se sentem à vontade para tratar a violência que impuseram ao país como algo heroico, é porque o Estado brasileiro não tem posição oficial a respeito.
O ESTADO CONCORDA – Se um general pode subir ao microfone e elogiar um golpe, se ele pode discutir a interpretação da História, é porque o Estado concorda que há debate. As Forças Armadas são do Estado. E chegamos ao ponto em que o presidente da República, mesmo vítima de uma nova tentativa de golpe, escolhe não lembrar.
A escolha de não lembrar, a escolha de não tratar com clareza a coisa pelo nome, é o que faz acontecer de novo. Como aconteceu.
No domingo, o golpe fez 60 anos. Sua sombra continuará pendendo sobre nós enquanto o Estado brasileiro não disser com clareza o que é democracia, o que é ditadura e onde é o lugar do militar na política. (Fora dela.) Já vimos que não será o atual presidente.
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