Waldemar José Solha
Waldemar José Solha
Waldemar José Solha

O QUE QUASE TODO BRASILEIRO ESTÁ SENTINDO

Por: | 24/04/2025

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O conto FOSSO, FOSSAS – do livro Eles não Moram Mais Aqui, de Ronaldo Cagiano, termina com uma resposta estranha à pergunta “O que fazer?”:

- a ordenha do nada absoluto.

Em 2016, esse mineiro de Cataguases publica, pela Patuá, o livro de versos OBSERVATÓRIO DO CAOS, que recebi dele, de Lisboa – onde se exilou com Eltânia André ( também escritora ) - anexado a um e-mail, e ... a obra me parece, justamente, essa... “ordenha do nada absoluto”. Trata-se de “um olhar clarividente e desenganado sobre o Caos que envolve o poeta”, diz o prefácio - "Sociedade e Ética na poesia de Ronaldo Cagiano" - de Victor Oliveira Mateus.

O que eu teria a acrescentar a esse exame acurado feito pelo poeta, ensaísta e crítico literário português? Bem, literatura, para mim – de qualquer gênero – depende, como o cinema, de sua “fotografia” – ou, numa expressão que possa se estender às duas artes: da qualidade das imagens de que se servem. O Cidadão Kane perderia muito se não tivesse Greg Tolland atrás das câmeras. O mesmo vale para Apocalypse Now e... Dick Tracy, caso desprovidos de Vittorio Storaro. O que seria da Eneida de Virgílio; de Cem Anos de Solidão, do Gabo; e do Grande Sertão: Veredas, sem o visual oferecido pelos seus textos... soberbos?

Cagiano parte de uma visão de mundo... que lembra a de Augusto dos Anjos – outro estupendo fomentador de visões densas. Veja estes versos do mineiro, que recolhi do livro por terem a palavra verme ( coisa comum no paraibano ):

- Toda notícia é antecipação do caos. A fúria dos vermes decompõe o que restou do corpo que um dia foi catedral de devaneios.

- Banquete dos vermes, festa dos micróbios na carne aviltada pelo desastre. (...) Todas as manhãs o sol traz um novo luto.

Isso já cria um “clima” bastante pra baixo. Mas veja como isto é bonito:

- Há um jardim de flores mortas na casa ao lado, nenhuma luz penetra em seus canteiros... a não ser a claridade fugaz dos vagalumes serpenteando por esses descaminhos tão lúgubres quanto a dor que me desconstrói.

Cagiano cria cenas como Giorgio Morandi criava naturezas... de fato mortas:

- a memória dos ossos na substância indelével dos dias.

- a vida e seus móveis e utensílios não parecem o que são.

- a sólida imprecisão das coisas.

Nem Paris escapa desse "desinteresse geral pelas coisas" demonstrado pelo Poeta, não pelo seu "câmera": O que é, para ele, a cidade-luz?

- Gárgulas drenando as excreções dos telhados.

Vê-se um surrealismo, claro, nisso tudo. Hemingway disse que aprendeu a escrever vendo grandes pinturas no Prado e no Louvre. Há momentos em que Cagiano vai além de Morandi, humaniza-se, lembra-me Magritte e Delvaux:

- Do pátio da velha estação (esqueleto desativado onde hibernam morcegos) procuro no tempo escuro e abissal a histriônica locomotiva da infância penetrando a cidade como um raio.

- Umas vozes sombrias vinham lá de dentro daquele boteco encrustado na rua Augusta Nenhuma sincronia com aquele mundo: desassombro olhando aquelas mesas vazias (num domingo repleto de tédio).

Mas por que essa visão do mundo? O prefaciador português fala claramente o motivo. Mas aqui , ele mesmo, Cagiano, me responde:

- Expulsaram-nos das utopias, encarcerados em um século sem rumo.

O inimigo - ou seu símbolo - é, para ele, visível. Três vezes, no livro, ele o menciona, três vezes a palavra “implodir” aparece:

- Vejo a pressurosa Manhattan, a ilha que não conseguimos implodir com os cogumelos de nossa ira.

- e a Ilha de Manhattan continua intacta. Queremos implodi-la com as dinamites das minas de Itabira, mas há um Atlântico a nos fatigar.

- os fogos de São João incapazes de implodir a Ilha de Manhattan.

É curiosa a sensação que Cagiano me passa. Apesar de abominar o estado em que se encontra o país – o que levou o poeta a deixá-lo com Eltânia André - minha visão de mundo – se não chega a ser a do La Vita è Bella, do Begnini - em nada se parece com a sua, mas ela me seduz pela coerência interna e pela beleza com que é criada.

- aqui estou, animal entre ruínas, de mãos vazias, mas para dizer diante da esperança defunta que construí algo de meu: este silêncio esta solidão.

Acho que temos milhões de leitores que se identificarão com ele.


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