Analfabeto até os quinze, de repente apareceu escrevendo e lendo e chamou tanta atenção por isso, que foi levado pra ser Seminarista em Cajazeiras, onde recebeu da madrinha Nena Queiroga – dona do Primeiro Cartório em Pombal – patrocínio de seus estudos. Nena, de quem fui amigo desde 63, quando tomei posse na agência do BB em sua cidade, parecia, de fato, uma fada, sempre tão serena quanto seus olhos azuis. Era viajada, amiga de boa leitura (forneceu-me muitos, muitos livros), e foi uma das minhas mais estranhas surpresas, ao chegar do sudeste a Pombal, pelo toque de nobreza meio à Deborah Kerr, atriz inglesa muito em voga na época, ruiva como ela, enorme simplicidade. Certa vez me cedeu todas as cartas que recebera desse fiel correspondente – seu afilhado – e aqui as repasso, em fragmentos, pra que você lhe acompanhe a trajetória, cujo final me parece muito comovente. Tanto, que me servi do contexto para criar um de meus romances – “Arkádtich” (Ideia, 2012).
SEMINÁRIO DE CAJAZEIRAS, 04/08/59 – (...) Madrinha, penso muitas vezes na senhora, com esse seu temperamento, sua melancolia... (...) a vida, porém, é boa ou má tal qual a gente pensa que ela é (...)
RIACHO VERDE, 19/01/60 – (...) Madrinha, nossa amizade foi uma das mais preciosas graças de Deus em minha vida. A senhora semeou um pouco de felicidade num espírito onde só medrava pessimismo e decepção. Assisti à Semana Litúrgica em Cajazeiras. Gostei muito. Mas ainda de ver e ouvir D. Estevão Bettencourt – homem de vasta cultura e grande santidade (...)
SEMINÁRIO, 19/03/60 – Madrinha.Nena: abençoe-me (...) Vou bem de estudos. Procuro o quanto posso, não desperdiçar o tempo. Considero preciosíssima essa fase de preparação. O futuro depende, em grande parte, da formação agora recebida. Se esta for truncada ou prejudicada,
SEMINÁRIO, 18.08.60. – Nena querida: você viu televisão? Oh! Que grande coisa! Eu nem a invejo muito: vi meu irmão que também já tinha visto televisão no Recife. (...) Ah, recebi o dinheiro (Cr$ 500,00) que você me enviou. Muito lhe agradeço. (...) Hoje lhe peço o dinheiro da batina: Cr$ 3.000,00.
RECIFE, 21.04.61 – Fiz exame de seleção no Colégio Estadual. Fui aprovado e matriculado. (...) Estou trabalhando no escritório da CRUSH.
RECIFE, 04.11.61 – Ao que parece, até nossa amizade sofreu modificações na gestão Jânio: a instrução 204 da SUMOC alterou o preço do papel e veio a elevação das tarifas postais, por isso a senhora não me escreve mais. (...) Agora um pedido: um empréstimo de Cr$ 5.000,00. (...) Minhas notas em outubro: Português: 9,5. Latim: 10. Francês: 10. Ing; 10. Espanhol: 10. História Geral: 10. Matemática: 10. Geografia: 10.
RIO DE JANEIRO, 20.02.62 – Estou no Rio desde 24 de dezembro. Julguei melhor não avisá-la, fazer-lhe surpresa. (...) Empreguei-me e consegui vaga num Colégio Estadual (...)
RIO – 20.04.62 – Torno a repetir: não me filio a nenhum credo. Quando abandonamos o catolicismo, dificilmente nos encorajamos a abraçar outras ideias, com medo de sermos novamente desiludidos. Tornamo-nos cépticos, ecléticos (...). Frequento a Biblioteca Nacional (...)
RIO, 25/05/62 – Gostei de saber de sua próxima viagem à Europa. (...) O Brasil conquistou a Palma de Ouro em Cannes com “O Pagador de Promessas”! (...) Está instalada em São Cristóvão a Exposição Soviética de Indústria e Comércio, uma amostra do progresso científico, técnico e cultural da URSS. É lógico que os da direita a consideraram como uma infiltração comunista e formaram defensiva. Coronel Lameirão (o nome já diz quase tudo), oficial da Aeronáutica e do QG da reação, colocou uma bomba-relógio no recinto da exposição. Se chegasse a explodir, teria ocorrido uma catástrofe.
RIO, 25/09/62 – O mais difícil está superado: saí daquelas brenhas da serra onde nasci e, estou no Rio, sem nenhum desmerecimento ante os da minha idade. No mais, vive-se na rotina: crise de abastecimento, moeda desvalorizada (dólar a Cr$ 700,00)...
RIO, 17/11/62 – Quanto às minhas notas, muito 10. (...) Temos um centro de atividades extraclasse, ao qual na próxima semana comparecerá o poeta Manuel Bandeira (...) Assisto a muitas conferências. (...) Fiz um curso de literatura modernista a cargo de Alceu de Amoroso Lima, Austragésilo de Ataíde, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Afrânio Coutinho e Peregrino Júnior (...). Sou o chefe do Departamento Cultural do Centro de Estudantes Paraibanos.
RIO, 16/02/63 – Madrinha Nena: tenho-a em mente. Mudei de emprego: fui para o Banco Nacional de Minas Gerais, mediante concurso. Ordenado inicial: Cr$ 27.500,00.
RIO, 12/05/63 – Entrei para a PETROBRÁS. Ordenado inicial Cr$ 53.000,00 (...) Voto ódio à religião. Agora vivo tranqüilo: sou eu mesmo. (...) Farei Economia ou Administração.
RIO, 25/07/63 – Querida Madrinha Nena: (...) a senhora faz cada pedido difícil. Agora solicita respeitosa indiferença para com a religião. Impossível. A meu ver, nada existe de sério. (...) Confesso-lhe sentir um espírito altamente destruidor em relação a tudo que é convencional, estratificado, estático, dogmático, considerado intocável. Intocável mesmo é a PETROBRÁS, certo? (...) A fé nos impede de pensar.
RIO, 18/09/63 – Querida Madrinha Nena. Envio-lhe o discurso do ministro da Educação, Paulo de Tarso, proferido em Bogotá no mês passado – um libelo contra a mentalidade burguesa (...) uma profissão de fé revolucionária. Em fins de agosto participei de um Congresso de Trabalhadores, em Caxias. (...) Como filho de camponês, operário e estudante, tenho de formar entre as forças de vanguarda. (...) Mesmo bastante atarefado, tenho tempo para escrever minhas cartinhas, coisa que não ocorre com a dona do 1° Cartório de Pombal...
RIO, 14/03/64 – Candidatei-me a uma vaga na Universidade Amizade dos Povos (Moscou) – escola de Economia (...) Fiz vestibular na Faculdade Nacional de Filosofia – Curso de Ciências Sociais (...) No comício das reformas, de ontem – a que compareceram mais de 100 mil pessoas – na Central do Brasil, o pres. Goulart assinou o decreto de encampação de 6 refinarias particulares de petróleo em favor da PETROBRÁS. (...) Remeto-lhe recortes de “O SINDIPETRO”, em que sempre colaboro.
RIO, 10/05/64 – Além da convulsão revolucionária-político-militar-sócio-econômico-democrático-cristão-moralizadora, fui acometido de outro incômodo, este no olho direito e tive de fazer uma operação de pterígio. (...) Iniciei o Curso de Ciências Sociais. (...) A PETROBRÁS vai fazer um expurgo e é bem possível que eu seja uma das vítimas...
RIO, 06/07/64 – (...) Estou no Banco do Estado de São Paulo, desde 1° de junho. Dos 29.651 candidatos passaram 1.700 e fiquei em 5° lugar. Fiquei lotado no Rio, mas pretendo ir para São Paulo, no próximo ano. Atualmente é o maior e melhor centro de estudos do país. O Banco paga bem, mas isso não me deslumbra. É simplesmente meio para estudar. Só me comprometo com meus ideais. (...) A situação aqui é negra. Custo de vida altíssimo, salários de fome, crise no comércio e na indústria. Falências. Desemprego. (...) Enquanto isso, 6 bilhões e 400 milhões de cruzeiros são destinados à força de paz em São Domingos. (...) Pra completar, entrou na dança uma tal de LÍDER (Liga Democrática Radical), organização terrorista e agitadora de direita, ressurreição do Clube da Lanterna. E o governo continua no afã de catar comunistas, decretar prisões preventivas, instaurar IPM’s. (...) E os guardiões da ordem anunciam que o país se encontra em estado de calma.
RIO, 07/09/64 – É de admirar a evolução da Igreja depois de João XXIII, nas questões sociais...
RIO, 16/02/65 – Querida Madrinha Nena: o sentimento que me quer dominar neste instante não o sei definir. Talvez seja bem próximo do ódio com uns tais americanos que se encontram aí em Pombal, agentes da Aliança contra o Progresso. Segundo Martha Jerusa, são carne e unha com você. Como a senhora é fácil de ser explorada. (...) Soube, também, do namoro de Ivonildes com um chinês. Até no namoro é subversiva. Escolher logo um chinês é, com licença da expressão, muito peito. Como Pombal está cosmopolita. (...) Madrinha: gosto de uma moça daqui, mas não receio pelo casamento. Isso representaria um empecilho aos meus melhores planos. Minha namorada sabe disso. Não poderia trazê-la enganada. (...) Estou me preparando para um concurso de Aux. de Fazenda no Est. da Guanabara e outro para o Estado de S. Paulo. (...) Vou fazer o 2° ano de Sociologia na Univers. do Brasil.
MOSCOU. 14/09/65 – Madrinha Nena: talvez a senhora já saiba que me encontro na Europa, para estudar. De Paris lhe enviei um cartão explicando por que não a avisara antes de sair do Brasil (...). Acho-me em Moscou, com uma bolsa de estudos, por 5 anos, para fazer o Curso de Economia na Universidade da Amizade dos Povos, também chamada Patrice Lumumba. (...) Moscou é uma cidade simples, de beleza singela, avenidas largas e ajardinadas, cheia de parques maravilhosos. (...) Pode-se dizer que ela é um grande jardim recortado de avenidas. (...) Quando a senhora me escrever, mande a carta para o Chiquinho, no Rio. Ele me enviará, para lhe evitar complicações com essa situação do Brasil. Aqui recebemos, no 1° ano, 80 rublos mensais, equivalente a 165.000 cruzeiros (1 rublo = 1,11 dólar). A partir do 2°, 90 rublos mensais. A Universidade nos dá ainda moradia gratuita e roupa de cama (lavada). A alimentação, pagamo-la, mas a Univ. mesma tem restaurante. (...) São 6 horas diárias de aula e o rigor dos estudos é muito intenso. A Univ. possui um cuidado quase excessivo conosco. Não se pode dar um espirro que já querem nos enviar ao médico. Temos uma policlínica nossa e há plantão médico dia e noite. Se por acaso o estudante é acometido de uma doença e por isso quer retornar a seu país, só poderá fazê-lo depois de receber todo o tratamento possível. Doente não sairá.
MOSCOU – (carta sem data, assinada por Jeanne Dolnovolskaia) – Prezada senhora: aceite minhas condolências pelo falecimento de Manoel Freire. Eu era sua professora de russo e estava com ele naquele dia, terrível, de sua morte – 20 de dezembro. É-me difícil escrever esta carta. É duro se compreender a injustiça da sorte. Não se pôde salvá-lo, pois era tarde demais. O mal na cabeça começou em novembro. Para não perder as aulas, Manoel só recorreu à medicina quando o sofrimento se tornou insuportável. E a medicina foi impotente para a doença, sarcoma do cerebelo. Ele sofreu muito. Mas era paciente e os médicos se admiraram de sua coragem. Eu o conhecia pouco, embora o visse diariamente, pois era chefe de meu grupo. Ele jamais falava de si mesmo. Era um homem modesto e simpático, muito bom camarada e o melhor estudante da Universidade. Ajudava todo mundo. Nós o chamávamos de um homem indispensável. Num de seus últimos dias, Manoel me disse que eu parecia com a mãe dele. (...) Eu me inclino perante a senhora. Manoel descansa na Rússia.
De sua:
Jeanne Dolnovolskaia


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