Waldemar José Solha
Waldemar José Solha
Waldemar José Solha

UNA GIORNATA PARTICOLARE UM DIA MUITO ESPECIAL

Por: | 08/06/2025

Amanheci aquele sábado de 2010 dentro do Recife, para onde fora a fim de que, saindo de lá, viajasse para o interior, onde ocorreriam minhas primeiras cenas no primeiro longa do Kléber Mendonça Filho, O Som ao Redor. O serviço de meteorologia, no entanto, indevidamente nos obrigou ao adiamento do trabalho para o dia seguinte. Tentei – com enorme curiosidade - ver as filmagens que ocorriam, em lugar das minhas, na casa do próprio Kléber ( que passara a ser da personagem da Maeve Jinkings ) , mas era tal a quantidade de técnicos e equipamentos atravancando escadas e corredores, que desisti. Fui salvo de um dia vazio pelos cineastas baianos Cláudio Marques e Marília Hughes – amigos do nosso diretor, hospedados em sua residência – que me perguntaram se não queria ir com eles à sessão das dez do Cine São Luiz. Como Kléber – que se revelava apaixonado por aquele cinema - já me perguntara se eu já o vira depois da reforma, aceitei o convite. Foi uma bela volta ao passado. Apesar de ser de 52, a sala tem toda a cara de um espaço decorado trinta anos antes, e me deslumbrei no momento em que as luzes se apagaram para o início da projeção e, por um instante, acenderam-se - dos dois lados da tela - vitrais bem no estilo Tiffany, art nouveau.

-

Vi, em seguida, o filme que tem o título deste texto: Um dia muito especial – Una Giornata Particolare - de Ettore Scola, com Sophia Loren e Marcelo Mastroiani. Os dois estão soberbos na história magnificamente conduzida. É 1938, Hitler visita a Roma de Mussolini, todo mundo sai de casa pra assistir ao portentoso desfile militar romano e ver o Führer – em pessoa – discursar, todo mundo, menos Antonietta ( Sophia Loren ), que tem de ficar no seu “apertamento” pra arrumar o caos deixado pelos seis filhos e pelo marido fascista. Somente ela? Não: ficam, também, uma bisbilhoteira tipo “com mulher de bigode ninguém pode”, vigia fascistíssima do local ... e – até como contraste - um deprimido Gabriele, Marcelo Mastroiani, que acaba de perder o emprego de locutor de rádio,... por ser homossexual, ao tempo em que perde, também, seu amante. O caso entre ele e Antonietta acontece, o tempo todo com o potente ... som ao redor, sempre em off, que é o da transmissão do grande e opressivo acontecimento da cidade, pelo aparelho da vigia. TUDO é em extremo comovente.

-

Saímos do filme – Cláudio/Marília e eu – deslumbrados, e nossa GIORNATA PARTICULARE seguiu na vida real. Almoçamos numa biboca do Recife Velho, depois fomos conhecer a fabulosa Livraria Cultura – Paço da Alfândega, ali na Madre de Deus 271. No meio daquele gigantesco hipermercado cultural, com todo tipo de livros, revistas, discos e filmes, foi ótimo me deparar com o amigo Sílvio Osias, que- tempos depois - me daria a notícia de que a Cultura fechara.

- Liguei pra sua casa – falou-me. - Disseram-me que você estava filmando no interior de Pernambuco...

- Foi tudo adiado pra amanhã. E você?

- Venho sempre aqui pro Recife, pra livraria, fazer compras...

À tarde, o sonoplasta de O Som ao Redor, o belga Nicolas ( Nicolá) me retransmitiu o convite – do Kleber – de jantar com ele, a esposa Emilie Lesclaux e parte da equipe do filme, num restaurante japonês. Conversar com Kléber durante horas, ele no saquê, eu na cerveja, foi a derradeira grande experiência do dia. Ele é enciclopédico, no que se refere a cinema, e o fato de ser um dos grandes críticos cinematográficos do país, extremamente atualizado (acabara de cobrir o Festival de Cannes para o Jornal do Commercio) , foi coisa de tirar o fôlego. Claro que meu maior interesse, no entanto, estava em saber como andavam as filmagens de que eu começaria a participar no dia seguinte. Pra não ser infiel a seu modo tranquilo, a resposta que me deu eu a tiro de seu blog:

- Não sei bem como compartilhar a sensação, mas em maio Cannes me deu a experiência inigualável de ver muito filme, e agora eu estou dentro do meu próprio filme. Como no festival, eu aqui tenho alguma ideia do que fazer, mas vez ou outra me sinto perdido, sem ter exatamente uma ideia fechada sobre o que ver ou procurar. De qualquer forma, estar dentro das imagens, vendo-as ou inventando as minhas, é uma coisa que não tem preço, e no que os anos passam, e você acumula experiência de vida, logo vê que as imagens e os sons são indissociáveis da vida em si. Talvez por serem mesmo prova de existir, vendo ou filmando.

Bem. Mas o bom, o bom mesmo, dessa minha Giornata , foi o fato de saber que no dia seguinte eu me veria, às cinco da manhã, numa van, fazendo parte de enorme caravana de outras vans e caminhões-baú, rumo ao recanto amado pelo personagem que iria interpretar.


Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário