Waldemar José Solha
Waldemar José Solha
Waldemar José Solha

GONZAGA

Por: | 21/06/2025


GONZAGA RODRIGUES ANIVERSARIA HOJE. Em comemoração, aqui vai um estudo que fiz sobre uma de suas obras ( enquanto ele fazia seu grande jornalismo ) e que faz parte de meu volume SOBRE 50 LIVROS ( BRASILEITROS/CONTEMPORÂNEOS ) QUE EU GOSTARIA DE TER ASSINADO:

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GONZAGA

W. J. Solha

“Retrato de Memória”, no livro homônimo, é uma estória com cinqüenta e três páginas. Nos primeiros dois terços anotei uma série de expressões que não vi no terço final, quando o narrador deixa de rememorar a vida do campo e se lembra de Campina.. Lá estão gasogênio, moenda, mescla, camarinha, sagrado coração de Jesus, casa de farinha, alpendres, jasmins-laranjas, cortiços de uruçu, cará, chá de cidreira, laranja mimo do céu, várzea de cana, manipeba, cocó, cevadeira, engenho, roçado, curuvela, passarinha, misto de duas boléias, torta de algodão, quixabeira, grande eclipse, cabresto, poldro, beradeiro, russinante, surrão, contos de réis. A lista, que vai longe, lembra-me dois poemas antológicos de Jessiê Quirino: “Isso é Cagado e Cuspido Paisagem de Interior” e “Vou-me embora pro Passado”.

Gonzaga é contido, exato nas palavras. Conhece o peso, tamanho, profundidade, a luz, o cheiro, a temperatura e a cor de cada uma delas. Tivesse a frouxidão vocabular de Zé Lins, teria feito um romance. Como não tem, também, a retórica de Zé Américo, cheia de frases de efeito, parece que puxou – apesar do amor às pessoas e à obra dos dois conterrâneos - ao alagoano Graciliano, para o qual tudo que era demais era veneno. Vê-se que ele é o tipo do autor que sua sangue pra escrever uma frase. Eu já ouvia dele, nos anos setenta, no terraço da casa do Nathanael Alves, alguns dos “causos” que compõem essa sua narrativa, como aquele, muito forte, da queda da torre da igreja. Ruminou sua saga durante muito tempo, como se vê. O resultado é um texto irretocável

Mas, como todo leitor, costumo ter sintonias inexplicáveis com certas obras mais do que com outras. Prefiro – por exemplo – o “Ninguém Escreve ao Coronel” ao “Cem Anos de Solidão”. Mil vezes, para mim, o “Vitória”, de Knut Hamsum, do que o “Fome”, que lhe rendeu o Nobel. “O Burrinho Pedrês” , do Guimarães Rosa, me pegou bem mais do que “Grande Sertão: Veredas”, apesar da genialidade do livrão. E não me ponham a ler qualquer coisa de Borges depois do poema em que ele fala do “firme diamante e da água solta”, bem como da álgebra, “palácio de cristais”. Pois bem. Gostei muito de “Retrato de Memória”, do Gonzaga, mas muito mais de um conto de duas páginas, que há no final de seu livro: “A Mulher da Foto”. Por quê? Porque me parece perfeito como forma e conteúdo. Diz Joyce, no “Ulisses”, que “falar do mistério no seio do próprio mistério, isso é arte”. Claro que nos surge à mente, logo, o sorriso de Mona Lisa, a eterna dilação de Hamlet em seu projeto de vingança, e fico pensando se a Vitória de Samotrácia – lá no Louvre - não deve oitenta por cento de seu fascínio à falta de seus braços e da cabeça, tudo resumido a um mulherão alado.. Gonzaga trabalha bem com esse elemento de incompletitude já no “Retrato de Memória”, cujo tema é a incapacidade, do narrador, de evocar com clareza o rosto do pai, um homem com perfil suficiente para ser “Meu Tipo Inesquecível” (da velha revista Seleções do Reader´s Digest). Mas quem, afinal, consegue ver o rosto de Capitu, cuja descrição se resume – segundo um amigo de Bentinho - a seus "olhos de cigana oblíqua e dissimulada.", “olhos de ressaca”, segundo o próprio “Dom Casmurro”? Não há, em Jorge Amado, “retratos falados” de Gabriela, Tieta do Agreste e de Dona Flor que conduzam à mesma Sônia Braga da novela e dos filmes. Gonzaga trabalhou matreiramente, portanto, com uma limitação intrínseca da literatura. Mas em “A Mulher da Foto” ele leva a não-visualização ao extremo. Que é que temos da fotografada? “É mulher, as vestes alvas e longas, a cabeça encoberta pela sombrinha. Saia bem larga, cobrindo os pés, e subindo em pregas fofas até estreitar-se delgadamente na cintura. Mulher verdinha, se vê”. Isso é uma delícia. E, se em “Retrato de Memória” ele não tem as feições do pai para nos passar, mas tem sua história, da mulher da foto, que atravessa a General Osório - da calçada da igreja de São Bento para a direita -, não há passado algum, apenas o momento resumido no flagrante, “de que ano, meu bom Deus?! A loja Branca Dias ainda não existe”. Como o clique foi de Walfredo Rodrigues, o narrador conclui que “setenta anos são passados”, e se lamenta por não ter uma lupa, a fim de entrar em mais detalhes sobre aquela criatura que o fascina tanto. O “Blow-up” de Antonioni e o “Blade Runner” de Ridley Scott permitem-nos ver quanta informação uma foto, ampliada e manipulada, pode render. Mas sem maiores recursos que os da pura poesia, Gonzaga faz como Zé Limeira, que nos promete fotografar o filósofo e filosofar o fotógrafo. Nosso autor descobre... “vestígios de amor nesse instante fotográfico” que tem nas mãos. Quais? Bem, leia e releia o conto. São apenas duas páginas. Da melhor qualidade.


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