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LUXO E CAPITALISMO

Por: Clemente Rosas | 27/07/2025

LUXO E CAPITALISMO

                                                  Clemente Rosas

Ocorre-me, neste momento, observar que nós, que fazemos da leitura nossa ocupação mais relevante, podemos também ter gratas surpresas, ao visitar nossas modestas bibliotecas particulares. É certo que ninguém há de afirmar que já leu TODOS os livros que tem em casa. Sempre há alguns que recebemos, ou mesmo compramos, e deixamos de lado por razões diversas: excesso de trabalho, mudança do foco de interesse, prioridades momentâneas...  que mais?  O fato é que acabam esquecidos entre outros, nas nossas estantes improvisadas.

E aí pode surgir o lampejo. Minha atenção foi atraída por um livrinho que descobri espremido, na horizontal, sobre uma bela coleção (“História em Revista”).  Seu título: Lujo y Capitalismo. Autor: Werner Sombart (1863-1941), em edição espanhola. Verifiquei a data, que costumo pôr ao lado da minha assinatura, na primeira folha: 1969. Há 56 anos, portanto. E não tenho nenhuma lembrança de como e onde o comprei. O fato é que ele dormiu todo esse tempo ao alcance da minha mão. Como já disse um escritor famoso, os livros são pacientes.

Já ouvira falar do autor, contemporâneo de Max Weber (1864-1920) na virada dos séculos XIX-XX, ambos sociólogos de formação não-marxista, com elevado conceito em suas análises sobre o sistema econômico da livre iniciativa, então florescente. E me senti tentado a ver o que me dizia o mestre, em seu livrinho.

Cabe aqui a ressalva de que, após a falência do chamado socialismo real, com o desmanche da União Soviética e o restabelecimento, em diferentes graus, da liberdade de empreender em seus satélites - desvanecendo-se assim o nosso sonho de uma sociedade humana alternativa, equânime e solidária - a crítica ao capitalismo saiu de moda. Agora fala-se no “fim da História”, e entoam-se loas ao mecanismo de mercado, numa postura quase hagiológica. Podemos, no entanto, num exercício de humildade, perquirir como surgiu tal fenômeno. Se já não o encaramos como um avantesma, tampouco se justifica considerá-lo agora um avatar.

A principal linha do livro de Sombart, como o título o indica, é demonstrar que o sistema capitalista é fruto dos anseios de luxo dos “ricaços”, sobretudo nos países europeus: França, Itália, Inglaterra, Alemanha.  E mais que isso: das exigências das amantes de nobres, mesmo já decadentes, e burgueses endinheirados, novos ricos.  Eram as cortesãs, as maîtresses, como está expresso na última frase do livro, que reproduzirei ao final deste texto. Ao tempo de Luiz XIV, o “Rei Sol”, algumas ficaram famosas: Madame de Pompadour e a condessa Du Barry são dadas como exemplos.

É impressionante a quantidade de dados estatísticos a que recorre o autor, com apoio em numerosos livros, documentos e registros, para demonstrar sua tese sobre as origens “bastardas” do capitalismo. Não havia, àquele tempo - para mais uma surpresa nossa - orçamentos secretos, nem contas sigilosas. E assim, mesmo as despesas mais íntimas do “Rei Sol”, como as dos demais burocratas ricos e poderosos, eram conhecidas de todos. Algo inimaginável nos dias de hoje – para nossa vergonha.

Mas há um importante aspecto da profunda transformação sofrida pela humanidade nos albores da Idade Moderna, que é omitido por Sombart. É certo que as mudanças começaram ainda na Idade Média, com o desvelar da cortina do Extremo Oriente, a Rota da Seda e as Cruzadas.  Mas a explosão de riqueza que permitiu satisfazer o luxo dos capitalistas veio com as colônias das Américas e da África e a escravidão dos nativos dessas paragens.

A omissão consiste, portanto, na desconsideração deste fator para o custeio do luxo exigido pelas amantes dos ricos, e por eles prodigalizado, com todos os seus desdobramentos.  Pois é certo que a nova conjuntura econômica impulsionou a formação de uma classe média urbana quase inexistente nos burgos medievais. Ficaram de fora aqueles que compunham o que Sombart chama de misera contribuens plebs, onde se situavam, nos primórdios do capitalismo, entre outros, os próprios trabalhadores industriais, produtores dos bens e serviços que não podiam comprar.

São surpreendentes as riquezas proporcionadas pela escravidão dos nativos das colônias europeias, nas Américas e na África, e pelo próprio tráfico de escravos. O ouro, a prata e o cobre do Novo Mundo, nos primeiros tempos, seguidos do açúcar, tabaco, cacau e café, foram os geradores das fortunas dos novos ricos, satirizados nos personagens de Molière (O Burguês Fidalgo) e de Eça de Queiroz (Os Maias), este último na pessoa do bisonho filho de um traficante endinheirado.  Ao ponto de alguns analistas da história imaginarem que, sem tal afluxo de riqueza, a humanidade poderia ter mergulhado numa segunda Idade Média.

 É de ser registrado que o capitalismo, para viabilizar-se em seus primórdios, promoveu, com o escravismo, uma regressão sobre as relações produtivas medievais, onde prevalecia o sistema mais brando da servidão da gleba.  Com o agravante da brutalidade e da torpeza da transferência forçada de milhões de negros das feitorias africanas para o Novo Continente, implicando a perda de incontáveis vidas humanas. Um episódio da nossa história que merece todas as objurgatórias do velho Marx sobre a acumulação primitiva do capital no processo civilizatório.

Mas voltemos à ideia central do livro, que é o capitalismo como fruto do luxo propiciado pelos burgueses ricos e pelos aristocratas às suas amantes. Entre elas, tanto as femmes entretenues, de um único patrocinador, como as cocotes, beneficiadas por vários indivíduos.  Note-se que o mundo intelectual reconhecia e avalizava a situação. Voltaire admitia o luxo, com a expressão: le superflu, chose très necessaire. Hume falava em um luxo “bom” e outro “mau”.  E até Boccaccio, em seu Decameron, revelava simpatia pelos anseios das freirinhas em relação às delícias do amor carnal com os varões. O autor fala ainda da extravagante riqueza de um filho (?) do Papa Sixto IV, e dos abusos de outros papas, quando o papado esteve dividido entre Roma e Avignon.

 

Por outro lado, em repetidas citações, a instituição do casamento é referida como apenas fruto de interesses patrimoniais e de “status” social, sem a mais leve sombra de sentimento amoroso. Tudo ratificando a tese sombartiana expressa na frase final do livro,abaixo transcrita:

Asi, el lujo, hijo, como hemos visto, legítimo del amor ilegítimo, es el generador del capitalismo.

 

 


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