LUXO E
CAPITALISMO
Clemente Rosas
Ocorre-me, neste
momento, observar que nós, que fazemos da leitura nossa ocupação mais relevante, podemos
também ter gratas surpresas, ao visitar nossas modestas bibliotecas
particulares. É certo que ninguém há de afirmar que já leu TODOS os livros que
tem em casa. Sempre há alguns que recebemos, ou mesmo compramos, e deixamos de
lado por razões diversas: excesso de trabalho, mudança do foco de interesse, prioridades
momentâneas... que mais? O fato é que acabam esquecidos entre outros,
nas nossas estantes improvisadas.
E aí pode
surgir o lampejo. Minha atenção foi atraída por um livrinho que descobri
espremido, na horizontal, sobre uma bela coleção (“História em Revista”). Seu título: Lujo y Capitalismo. Autor:
Werner Sombart (1863-1941), em edição espanhola. Verifiquei a data, que costumo
pôr ao lado da minha assinatura, na primeira folha: 1969. Há 56 anos, portanto.
E não tenho nenhuma lembrança de como e onde o comprei. O fato é que ele dormiu
todo esse tempo ao alcance da minha mão. Como já disse um escritor famoso, os
livros são pacientes.
Já ouvira
falar do autor, contemporâneo de Max Weber (1864-1920) na virada dos séculos
XIX-XX, ambos sociólogos de formação não-marxista, com elevado conceito em suas
análises sobre o sistema econômico da livre iniciativa, então florescente. E me
senti tentado a ver o que me dizia o mestre, em seu livrinho.
Cabe aqui a
ressalva de que, após a falência do chamado socialismo real, com o desmanche da
União Soviética e o restabelecimento, em diferentes graus, da liberdade de
empreender em seus satélites - desvanecendo-se assim o nosso sonho de uma
sociedade humana alternativa, equânime e solidária - a crítica ao capitalismo
saiu de moda. Agora fala-se no “fim da História”, e entoam-se loas ao mecanismo
de mercado, numa postura quase hagiológica. Podemos, no entanto, num exercício
de humildade, perquirir como surgiu tal fenômeno. Se já não o encaramos como um
avantesma, tampouco se justifica considerá-lo agora um avatar.
A principal
linha do livro de Sombart, como o título o indica, é demonstrar que o sistema
capitalista é fruto dos anseios de luxo dos “ricaços”, sobretudo nos países
europeus: França, Itália, Inglaterra, Alemanha.
E mais que isso: das exigências das amantes de nobres, mesmo já
decadentes, e burgueses endinheirados, novos ricos. Eram as cortesãs, as maîtresses, como
está expresso na última frase do livro, que reproduzirei ao final deste texto.
Ao tempo de Luiz XIV, o “Rei Sol”, algumas ficaram famosas: Madame de Pompadour
e a condessa Du Barry são dadas como exemplos.
É
impressionante a quantidade de dados estatísticos a que recorre o autor, com
apoio em numerosos livros, documentos e registros, para demonstrar sua tese
sobre as origens “bastardas” do capitalismo. Não havia, àquele tempo - para
mais uma surpresa nossa - orçamentos secretos, nem contas sigilosas. E assim,
mesmo as despesas mais íntimas do “Rei Sol”, como as dos demais burocratas ricos
e poderosos, eram conhecidas de todos. Algo inimaginável nos dias de hoje –
para nossa vergonha.
Mas há um
importante aspecto da profunda transformação sofrida pela humanidade nos
albores da Idade Moderna, que é omitido por Sombart. É certo que as mudanças
começaram ainda na Idade Média, com o desvelar da cortina do Extremo Oriente, a
Rota da Seda e as Cruzadas. Mas a
explosão de riqueza que permitiu satisfazer o luxo dos capitalistas veio com as
colônias das Américas e da África e a escravidão dos nativos dessas paragens.
A omissão
consiste, portanto, na desconsideração deste fator para o custeio do luxo
exigido pelas amantes dos ricos, e por eles prodigalizado, com todos os seus
desdobramentos. Pois é certo que a nova
conjuntura econômica impulsionou a formação de uma classe média urbana quase
inexistente nos burgos medievais. Ficaram de fora aqueles que compunham o que
Sombart chama de misera contribuens plebs, onde se situavam, nos
primórdios do capitalismo, entre outros, os próprios trabalhadores industriais,
produtores dos bens e serviços que não podiam comprar.
São
surpreendentes as riquezas proporcionadas pela escravidão dos nativos das
colônias europeias, nas Américas e na África, e pelo próprio tráfico de
escravos. O ouro, a prata e o cobre do Novo Mundo, nos primeiros tempos,
seguidos do açúcar, tabaco, cacau e café, foram os geradores das fortunas dos
novos ricos, satirizados nos personagens de Molière (O Burguês Fidalgo) e de
Eça de Queiroz (Os Maias), este último na pessoa do bisonho filho de um
traficante endinheirado. Ao ponto de
alguns analistas da história imaginarem que, sem tal afluxo de riqueza, a
humanidade poderia ter mergulhado numa segunda Idade Média.
É de ser registrado que o capitalismo, para
viabilizar-se em seus primórdios, promoveu, com o escravismo, uma regressão sobre
as relações produtivas medievais, onde prevalecia o sistema mais brando da
servidão da gleba. Com o agravante da brutalidade
e da torpeza da transferência forçada de milhões de negros das feitorias
africanas para o Novo Continente, implicando a perda de incontáveis vidas
humanas. Um episódio da nossa história que merece todas as objurgatórias do
velho Marx sobre a acumulação primitiva do capital no processo civilizatório.
Mas voltemos
à ideia central do livro, que é o capitalismo como fruto do luxo propiciado
pelos burgueses ricos e pelos aristocratas às suas amantes. Entre elas, tanto
as femmes entretenues, de um único patrocinador, como as cocotes, beneficiadas
por vários indivíduos. Note-se que o
mundo intelectual reconhecia e avalizava a situação. Voltaire admitia o luxo,
com a expressão: le superflu, chose très necessaire. Hume falava em um
luxo “bom” e outro “mau”. E até
Boccaccio, em seu Decameron, revelava simpatia pelos anseios das freirinhas em
relação às delícias do amor carnal com os varões. O autor fala ainda da
extravagante riqueza de um filho (?) do Papa Sixto IV, e dos abusos de outros
papas, quando o papado esteve dividido entre Roma e Avignon.
Por outro
lado, em repetidas citações, a instituição do casamento é referida como apenas
fruto de interesses patrimoniais e de “status” social, sem a mais leve sombra
de sentimento amoroso. Tudo ratificando a tese sombartiana expressa na frase final
do livro,abaixo transcrita:
Asi, el
lujo, hijo, como hemos visto, legítimo del amor ilegítimo, es el generador del
capitalismo.
Todos os campos são obrigatórios - O e-mail não será exibido em seu comentário