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Clemente
Rosas
Minhas
reflexões sobre o tema da velhice começaram aos meus 73 anos, com a crônica
“Velho, eu?”, publicada nesta revista eletrônica e constante do livro “Sonata
de Outono”, que editei em 2023. Naquela
altura, eu já tinha feito o Caminho Inca até Machu Pícchu, no Peru, oito anos
antes, e as trilhas do Parque Nacional Torres del Paine, na Patagônia Chilena,
no ano anterior. E ainda caminhava, nadava e jogava vôlei de praia com alguma
regularidade.
Depois veio,
perto dos 80 anos, a surpresa do Acidente Vascular Cerebral, que me paralisou o
lado direito do corpo e exigiu doze dias de internação hospitalar e alguns
meses de fisioterapia, dos quais saí razoavelmente recuperado: posso ainda caminhar
e nadar de maneira minimamente satisfatória. E escrevi “De senectute”,
inspirado na sabedoria de Norberto Bobbio, mas com um lampejo de otimismo.
Há ainda
dois textos meus em que o delicado tema da senilidade é tangenciado. “Trilhas do entardecer” foi escrito alguns
meses antes do incidente do AVC, e fala de uma caminhada no Parque Ecológico de
Pipa, no Rio Grande do Norte, quando fui aplaudido por outros andarilhos por
conseguir subir até o topo da falésia numa escada íngreme, apoiado apenas em
uma corda lateral e no meu cajado de Machu Pícchu, que me acompanhava sempre
nessas empreitadas. Naturalmente, não me empolguei: tomei o fato como um gesto
de despedida.
A outra
despedida foi no mar. “A derradeira
travessia”, arriscada após o AVC, consistiu na aventura náutica de nadar até a
linha de arrecifes que, na Praia Formosa, fica a pouco mais de um quilômetro da
praia. Já havíamos feito isso na juventude, em grupos, quando o espaço era
singrado apenas por silenciosos veleiros. Mas desta vez, aceitando
temerariamente a convocação de minha sobrinha Luciana, ao lado da minha irmã
Yara e minha filha Paulinha, todas eméritas nadadoras de diferentes gerações,
resolvi habilitar-me. Escoltado por
filha e sobrinha, que se atrasaram para acompanhar minhas lentas braçadas de
octogenário, acabei desistindo, a uns duzentos metros do ponto de chegada, dele afastado
pelo empuxo da maré enchente.
E
agora? O que me parece importante
registrar, quando completo 85 anos, após 5 decorridos do AVC? Uma perna “bêbada” me recomenda o uso de
bengala para transitar em áreas urbanas. Alguns dedos emperrados ao final de um
braço bisonho exigem concentração no ato de agarrar as coisas. O desconforto e
as urgências de uma hiperplasia prostática benigna vêm sendo administrados com
o uso de dois remédios, os únicos que preciso tomar. Não sou diabético nem hipertenso, não tenho
dores de cabeça, nem gripes, nem qualquer restrição alimentar. Qual, então a verdadeira
novidade?
É na cabeça,
como fonte do pensamento, que houve mudança.
Lembro-me bem que, enquanto estive internado no hospital, ou em
recuperação em casa, em nenhum momento a eventualidade da morte se me
apresentou: estava só focado no esforço do restabelecimento. Agora, que me posso
considerar razoavelmente bem sucedido nisso, penso nela permanentemente. Mas
sem nenhuma ansiedade, podem crer.
Racionalista
que sou, não temo as chamas infernais, nem aspiro às “eternas beatitudes”, que
só posso imaginar como muito chatas.
Para mim, a morte é um grande descanso, um sono sem sonhos, que não deve
nos causar nenhuma preocupação.
Consideremo-la apenas como o último ato da vida, esta sim, o grande
mistério a nos deslumbrar.
Várias são
as alegres reflexões para desmistificar a “indesejada das gentes”, a
“iniludível”, como a classificam poetas e pensadores. “É a última coisa que queremos fazer na
vida”. “Vamos esquecê-la, e esperar que
ela nos esqueça”. “Ela não tem nenhuma
importância, porque quando existimos, ela ainda não existe, e quando ela enfim
existe, nós já não existimos”. Luís Fernando Veríssimo, o grande humorista que
nos deixou recentemente, era dos bons nessa matéria.
Filhos
criados, alguns livros publicados, a sensação de missão cumprida: isto é o que
nos deixa livres para curtir a natureza, sem renúncia ao mister de continuar
transmitindo algo de válido para os
pósteros. Em suma, é como não “passar a vida em branca nuvem”, antes do
“plácido repouso”.
Há sempre,
no entanto, laços que nos prendem à vida, pessoalmente. Eu, que já “cravei” o
primeiro bisneto, fui há dois anos contemplado com uma netinha temporã, que
gostaria de ver desabrochar. E para isso me preparo, como um atleta de salto em
altura que eleva o nível do sarrafo: quem sabe 90 anos? Ou mesmo mais? Como na canção de Sinatra, a voz
inesquecível: Who knows where the road will lead us?
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