Uma visão mais ampla do carnaval, assim como das demais formas
populares de entretenimento, mostra que eles também podem encarnar a de
contra-hegemonia.
Os carnavais de clube foram substituídos, como vimos, pelos de rua, sendo os
mais tradicionais os de Olinda e Salvador e os mais recentes, os de São Paulo e
Belo Horizonte, cada vez mais impessoais e massificados. Sob a égide do
capital “tudo que é sólido se dissolve no ar e tudo que é sagrado é
profanado” (MARX: 1998, p. 8).
Atualmente, florescem, em muitos carnavais, práticas e valores que não se
moldam por formas de relacionamento ditadas pelo mercado, prenunciando o
advento de uma sociedade mais solidária que poderá, mais adiante, substituir as
hodiernas, governadas pelo dinheiro. Nas cidades supramencionadas, revigoram-
se antigos festejos de Momo, porém escoimados do moralismo que os
caracterizavam. Neles
se resgatam relações mais livres e afetos mais verdadeiros, ensejando, sobretudo
nos carnavais, que os foliões se divirtam e se confraternizem, sem o tacão da
moralidade repressiva nem dos valores do mercado. São espaços onde o
exercício da autonomia individual se combina com relações espontâneas de
amizade e com genuínas afinidades artístico-culturais por parte daqueles que não
podem participar da festa oficial. Mas isso não os leva a renunciar à condição
de sujeitos dos festejos de Momo, pondo em cheque a hegemonia da lógica
mercantil da indústria cultural.
Conforme destaca Viscardi et alli:
Qualquer semelhança com a disputa entre povo e a elite e as tentativas de
demarcações hierárquicas, freqüentemente quebradas pelas classes com menor poderio
econômico, não deve ser considerada como mera coincidência e sim como exemplos de
uma luta no campo da cultura, a partir de forças contra-hegemônicas que se colocam
em oposição ao cenário do carnaval reduzido à condição de mercadoria (VISCARDI:
2013, p. 20).
Para Chico César. “Alegria é política. Tirar uma semana da vida da pessoa que
trabalha e produz para ela se reunir com gente que não conhece na rua e com a
família, é algo muito político. É puro Carnaval” (2023).
Recentes e atuais carnavais, difundem valores contra-hegemônicos. que alcançam
dimensão política, transformando-se em palco de denúncias contra injustiças e
cobrando a sua reparação.
Desde a escravatura, os senhores de escravos sempre procuraram colocar limites
a essa festa popular. Gil e Caetano compreenderam plenamente a sua dimensão
libertária ao exaltar, em uma das suas composições, “o samba, pai do prazer, filho da
dor, o grande poder transformador” (ALENCAR: 2019).
Disso é exemplo o samba enredo da Mangueira, campeã do carnaval carioca de
2020. Prestando comovente homenagem a Marielle, sua letra lembra que “tem sangue
retinto pisado atrás do retrato emoldurado (SAMBA:2020).
Escolhendo como tema de seu desfile a denúncia dos falsos heróis da
nacionalidade, exaltados na literatura oficial e na maioria dos livros didáticos, a
Mangueira propiciou uma magnífica demonstração de contra-hegemonia, traduzida na
íntima relação entre protesto, carnaval e democracia.Nesse mesmo diapasão, o enredo
dessa escola contou a história de um Jesus de “rosto negro, sangue índio e corpo de
mulher”.
Criticando Bolsonaro,sem dizer o seu nome, o enredo em questão conclui
dizendo que “ Não tem futuro sem partilha, nem existe Messias de arma na mão”
(MANGUEIRA:2019).
Carnavais, especialmente em momentos de crise, ensejam protestos que se
assemelham a atos de desobediência civil, de insubordinação e de resistência.
Quanto maior o descompasso entre os líderes institucionais e os anseios do
homem comum, mais os cidadãos - no caso, os foliões e seus blocos - encontram nos
festejos populares espaço para o exercício da liberdade de crítica, sem a censura dos
governantes autoritários e de seus asseclas.
(*) Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros, de La gauche en France et la
construction européene (Paris:LGDJ, 1978) e Bolsonarismo: ideologia, psicologia e política
(João Pessoa: ED.CCTA/UFPB, 2021).
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Chico. Folia da resistência. Blog do Rubão. https://com.br
ANDRADE, Carlos Drummond. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Record,
1987.
BETTO, Frei. Labirinto e Carnaval. São Paulo: Folha de São Paulo, 5 fev. 2008.
BEZERRA. Danilo Alves. Carnavais do Rio de Janeiro e seus usos pelo Estado Novo
(1938-1942). Dissertação de Mestrado. UNESP-PPG-História. Assis, São Paulo, 2012.
CESAR, Chico. Carnaval é uma atividade cidadã e política, diz Chico César; Folha
Uol, 10.2.2023
MANGUEIRA faz crítica a Bolsonaro por falar em Messias de arma na mão. www.
folha.com.br Disponível em20.fev.2020. Acesso em 1 out. 2020.
MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez Editora, 1998.
MESSIAS de arma na mão e aldeia que não tem bispo. https:/GlGlobo.com 2019/12/02
NETO, Lira.
Getúlio: do governo provisório ao Estado Novo. São Paulo: Companhia das Letras,
2013.
PIO X. Catecismo da Doutrina Cristã. João Pessoa: Arquidiocese da Paraíba, 1951.
RAMOS, Aline. Especulações pré-BBB se tornam negócio lucrativo para famosos.
Folha de São Paulo: São Paulo, 10.1.2023.
SAMBA Enredo 2019: história para ninar gente grande. www.letras.mus.br Disponivel
em 19 out. 2019. Acesso em 25 set. 2020.
VISCARDI et alli. Carnaval: entre a contradição de classe e o produto midiático
espetacular. Estação Científica. Juiz de Fora, nº 9, janeiro-julho 2013.
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