Rubens Pinto Lyra
Rubens Pinto Lyra
Rubens Pinto Lyra

O carnaval como manifestação de contra-hegemonia

Por: | 27/02/2024

 

Uma visão mais ampla do carnaval, assim como das demais formas

populares de entretenimento, mostra que eles também podem encarnar a de

contra-hegemonia.

Os carnavais de clube foram substituídos, como vimos, pelos de rua, sendo os

mais tradicionais os de Olinda e Salvador e os mais recentes, os de São Paulo e

Belo Horizonte, cada vez mais impessoais e massificados. Sob a égide do

capital “tudo que é sólido se dissolve no ar e tudo que é sagrado é

profanado” (MARX: 1998, p. 8).

Atualmente, florescem, em muitos carnavais, práticas e valores que não se

moldam por formas de relacionamento ditadas pelo mercado, prenunciando o

advento de uma sociedade mais solidária que poderá, mais adiante, substituir as

hodiernas, governadas pelo dinheiro. Nas cidades supramencionadas, revigoram-

se antigos festejos de Momo, porém escoimados do moralismo que os

caracterizavam. Neles

se resgatam relações mais livres e afetos mais verdadeiros, ensejando, sobretudo

nos carnavais, que os foliões se divirtam e se confraternizem, sem o tacão da

moralidade repressiva nem dos valores do mercado. São espaços onde o

exercício da autonomia individual se combina com relações espontâneas de


amizade e com genuínas afinidades artístico-culturais por parte daqueles que não

podem participar da festa oficial. Mas isso não os leva a renunciar à condição

de sujeitos dos festejos de Momo, pondo em cheque a hegemonia da lógica

mercantil da indústria cultural.

Conforme destaca Viscardi et alli:

Qualquer semelhança com a disputa entre povo e a elite e as tentativas de

demarcações hierárquicas, freqüentemente quebradas pelas classes com menor poderio

econômico, não deve ser considerada como mera coincidência e sim como exemplos de

uma luta no campo da cultura, a partir de forças contra-hegemônicas que se colocam

em oposição ao cenário do carnaval reduzido à condição de mercadoria (VISCARDI:

2013, p. 20).

Para Chico César. “Alegria é política. Tirar uma semana da vida da pessoa que

trabalha e produz para ela se reunir com gente que não conhece na rua e com a

família, é algo muito político. É puro Carnaval” (2023).

Recentes e atuais carnavais, difundem valores contra-hegemônicos. que alcançam

dimensão política, transformando-se em palco de denúncias contra injustiças e

cobrando a sua reparação.

Desde a escravatura, os senhores de escravos sempre procuraram colocar limites

a essa festa popular. Gil e Caetano compreenderam plenamente a sua dimensão

libertária ao exaltar, em uma das suas composições, “o samba, pai do prazer, filho da

dor, o grande poder transformador” (ALENCAR: 2019).

Disso é exemplo o samba enredo da Mangueira, campeã do carnaval carioca de

2020. Prestando comovente homenagem a Marielle, sua letra lembra que “tem sangue

retinto pisado atrás do retrato emoldurado (SAMBA:2020).

Escolhendo como tema de seu desfile a denúncia dos falsos heróis da

nacionalidade, exaltados na literatura oficial e na maioria dos livros didáticos, a

Mangueira propiciou uma magnífica demonstração de contra-hegemonia, traduzida na

íntima relação entre protesto, carnaval e democracia.Nesse mesmo diapasão, o enredo

dessa escola contou a história de um Jesus de “rosto negro, sangue índio e corpo de

mulher”.

Criticando Bolsonaro,sem dizer o seu nome, o enredo em questão conclui

dizendo que “ Não tem futuro sem partilha, nem existe Messias de arma na mão”

(MANGUEIRA:2019).

Carnavais, especialmente em momentos de crise, ensejam protestos que se

assemelham a atos de desobediência civil, de insubordinação e de resistência.

Quanto maior o descompasso entre os líderes institucionais e os anseios do

homem comum, mais os cidadãos - no caso, os foliões e seus blocos - encontram nos

festejos populares espaço para o exercício da liberdade de crítica, sem a censura dos

governantes autoritários e de seus asseclas.


(*) Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros, de La gauche en France et la

construction européene (Paris:LGDJ, 1978) e Bolsonarismo: ideologia, psicologia e política

(João Pessoa: ED.CCTA/UFPB, 2021).


REFERÊNCIAS

ALENCAR, Chico. Folia da resistência. Blog do Rubão. https://com.br

ANDRADE, Carlos Drummond. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Record,

1987.

BETTO, Frei. Labirinto e Carnaval. São Paulo: Folha de São Paulo, 5 fev. 2008.

BEZERRA. Danilo Alves. Carnavais do Rio de Janeiro e seus usos pelo Estado Novo

(1938-1942). Dissertação de Mestrado. UNESP-PPG-História. Assis, São Paulo, 2012.

CESAR, Chico. Carnaval é uma atividade cidadã e política, diz Chico César; Folha

Uol, 10.2.2023

MANGUEIRA faz crítica a Bolsonaro por falar em Messias de arma na mão. www.

folha.com.br Disponível em20.fev.2020. Acesso em 1 out. 2020.

MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez Editora, 1998.

MESSIAS de arma na mão e aldeia que não tem bispo. https:/GlGlobo.com 2019/12/02

NETO, Lira.

Getúlio: do governo provisório ao Estado Novo. São Paulo: Companhia das Letras,

2013.

PIO X. Catecismo da Doutrina Cristã. João Pessoa: Arquidiocese da Paraíba, 1951.

RAMOS, Aline. Especulações pré-BBB se tornam negócio lucrativo para famosos.

Folha de São Paulo: São Paulo, 10.1.2023.

SAMBA Enredo 2019: história para ninar gente grande. www.letras.mus.br Disponivel

em 19 out. 2019. Acesso em 25 set. 2020.

VISCARDI et alli. Carnaval: entre a contradição de classe e o produto midiático

espetacular. Estação Científica. Juiz de Fora, nº 9, janeiro-julho 2013.


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