FARPAS
Clemente Rosas
“O País
perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a
conveniência. Não há princípio que não
seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os
cidadãos. Já não se crê na honestidade
dos homens públicos. A classe média
abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma
rotina dormente. O desprezo pelas ideias
aumenta a cada dia. Vivemos todos ao
acaso...”
Quem deixará
de reconhecer a atualidade desta análise?
No entanto, trata-se de documento do século XIX, recolhido e reproduzido
por Álvaro Moreyra, no seu livro “O Dia nos Olhos”. O pronunciamento, do velho Eça de Queiroz,
consta da primeira edição do jornal “As Farpas”, editado em Portugal por ele,
em parceria com Ramalho Ortigão. Ao
transcrevê-lo, o grande mestre da literatura de reminiscências ressalta a idade do
texto: 87 anos. Considerando que o livro
de Álvaro foi publicado nos anos 50 do século passado, temos aí um doloroso quadro dos
nossos tempos, composto há mais de século e meio.
Cabe a
pergunta: por que estamos tão mal? Nossa
república, mesmo capenga e “relativa”, tem dado sinais de vitalidade: elegemos
um líder operário, emigrante nordestino, e uma mulher, ex-combatente
revolucionária, que apeamos do poder, de forma legal, trazendo de volta o operário,
na carência de melhor opção. Mas agora convivemos com uma pletora de partidos
políticos sem nenhuma nitidez ideológica, e uma aberração política chamada, à
falta de melhor rótulo, de “presidencialismo de coalizão”. A alternativa
parlamentarista, proposta pela Comissão de Notáveis ao tempo da Assembleia
Constituinte, foi rejeitada, embora seja a fórmula predominante em quase todas
as nações desenvolvidas. Parece ser de difícil compreensão para as antigas
colônias portuguesas e espanholas do Novo Continente.
Mas cabe
também outra indagação: sempre estivemos assim, numa postura estática de
desgraça permanente, séculos afora? Ou
houve no Brasil um melancólico processo de degradação política, que nos levou,
ao longo dos anos, a tal ignomínia? Proponho um olhar para o passado mais
recente, que a minha geração testemunhou: os primeiros anos sessenta do século
passado.
Quem eram os
ministros do Governo João Goulart? E os parlamentares
brasileiros nesse tempo? Quero lembrar
que o saudoso Jango, por tantos anos desprestigiado, e tachado de esquerdista e
intelectualmente modesto após 1964, tem tido sua imagem recuperada,
recentemente, com os livros de Wagner William sobre Maria Thereza Goulart, e as
memórias de Almino Afonso, seu Ministro do Trabalho, ainda ativo aos mais de
noventa anos, onde encontramos
importantes documentos sobre o golpe militar que o derrubou.
Respondo à
pergunta. Ministros: o próprio Almino já
citado, Afonso Arinos, Tancredo Neves, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Celso
Furtado, Santiago Dantas, Valdir Pires, Brochado da Rocha, todos intelectuais
de elevado conceito. Senadores: Auro de Moura Andrade, Josafá Marinho, João
Agripino... Deputados: Pedro Aleixo, Artur Virgílio, Leonel Brizola, Ranieri
Mazilli... Também estes, como parlamentares, merecedores de respeito, independentemente
de sua cor política. Aliás, era fácil situá-los, pois havia alguma nitidez
ideológica nos partidos de então: PSD, UDN, PTB, PSB...
E o que
vemos hoje? Os numerosos partidos nada nos dizem sobre o engajamento dos seus
representantes nas grandes causas do país e da humanidade, com a tímida
exceção, talvez, do Partido Verde. Até
mesmo aquele dito dos trabalhadores, puro e idealista em sua origem, deixou-se
macular na sua experiência de poder, comprometendo o juízo do público sobre a
dignidade das esquerdas. Quanto aos ministros, são tantos que mal conhecemos os
seus nomes, e tampouco suas qualidades, com honrosas exceções. Aliás, um
segundo escalão gerencial tão numeroso, em qualquer organização, pública ou
privada, é simplesmente aberrante, não pode funcionar de maneira satisfatória. E
a mediocridade é generalizada.
Só podemos
concluir que a nossa representação política e parlamentar se deteriorou. Mas por que?
Os vinte anos de governo militar, com o Congresso mutilado, manietado e
até fechado, podem ter contribuído para a não formação, ou não evolução, de uma
classe política emergente. E a nossa
“intelligentsia”, em boa parte, foi forçada a emigrar. Quanto aos
revolucionários brasileiros, “combatentes das trevas”, findaram imolados numa
luta que se revelou inglória. Como a fênix lendária, teríamos que renascer das
cinzas.
Mas temo que
esta hipótese explicativa não seja suficiente.
O problema pode ter também uma dimensão internacional. Consideremos o
caso do nosso poderoso vizinho do Norte, que esteve – e corre ainda um pequeno
risco de voltar a estar – nas mãos de um indivíduo primário, tosco, xenófobo,
arrogante e inescrupuloso. Consideremos também os vários casos na Europa, de
criaturas semelhantes, eleitas em diferentes países, no avanço, antes
inimaginável, de uma extrema Direita que parecia sepultada ao fim da II Guerra
Mundial.
E sendo
assim, infelizmente, não tenho solução a propor. Fico apenas com o lamento de
Ramalho Ortigão, parceiro de Eça no jornal “As Farpas”, por ocasião do
afastamento de Alexandre Herculano, outra figura brilhante das letras portuguesas:
“À
tribuna parlamentar nunca mais tornou a subir um homem cuja voz firme, sonora e
vibrante levasse até aos quatro cantos do país a expressão viril das grandes
convicções... A imprensa decaiu como decaiu a tribuna, assaltada pelas
mediocridades ambiciosas e pelas incompetências audazes”.
É isso aí. E
o amanhã, como será?
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