NÁUFRAGOS
DA LIBERDADE
Clemente Rosas
Cristovam
Buarque, ex-reitor da Universidade de Brasília, ex-governador do Distrito
Federal, ex-senador, autor de dezenas de livros de ensaios, e que me honra com
sua amizade desde os tempos de engenheiro recém formado no Recife, acaba de
lançar seu último livro. Mais uma aventura no campo da ficção: Jogados ao Mar. E me brindou com uma generosa dedicatória: Para
Clemente, com a ousadia de entregar um livro a quem entende de livros e de
redação, mas com a tranquilidade de oferecê-lo a um amigo de décadas. Abraço.
Devo
esclarecer que já li e critiquei, em algumas resenhas, vários dos livros de
Cristovam, ensaísta criativo e audacioso, que aprecia o debate e respeita a
divergência, ao ponto de incluir, na edição de um deles, a contestação feita
por um dos seus amigos. Também neste caso, em que nosso homenageado, brilhante
pensador e expositor, arrisca-se de novo na ficção, prometi fazer um comentário
não apenas laudatório, o que, absolutamente, não o desagrada: com sua merecida
notoriedade, ele já não precisa de elogios. E eu tinha na lembrança uma aventura
anterior dele nesse campo arriscado para os ensaístas, cuja leitura, confesso,
não consegui concluir, pelo alto grau de artificialismo.
Mas agora,
tendo “devorado”, em dois dias, o seu Jogados ao Mar, tive uma gratíssima
surpresa: o livro explora, pela via ficcional, o problema transcendente da educação
no Brasil, com uma estrutura de romance policial, que prende o leitor e o faz
mergulhar na tragédia que todos nós, de alguma forma, vivemos, náufragos que
somos no mar de uma falsa liberdade, com a mal sucedida abolição da
escravatura.
O enredo
começa com a visita de um jornalista a um professor primário, afrodescendente,
a pretexto de investigar o abandono da escola por ele dirigida, e o
desaparecimento, de um dos seus alunos.
Trata-se de uma escola-modelo, em que a administração zela pelo
comparecimento dos meninos, indo até as famílias quando algum deles falta às
aulas, para saber a causa e tentar removê-la. E mesmo assim, convive com a
perda de alunos, por motivos diversos, inclusive pela morte.
O professor
tem apelido inusitado: “Véspera”, decorrente do seu histórico de vida. Seus antepassados,
desde o trisavô, nasceram antes das decisões governamentais que levaram ao fim
da escravatura: a proibição do tráfico, a lei do ventre livre e a dos
sexagenários, culminando com o ato da abolição. O primeiro dos ancestrais, num
gesto extremo, se teria jogado ao mar para fugir da escravidão, sendo resgatado
pelos tripulantes do navio negreiro, o que parece inverossímil. (Quem, posto a
ferros num porão, joga-se ao mar, logo afunda, e ninguém poderia alcançá-lo. Muito
ao contrário, era por tal meio que os traficantes de escravos se desfaziam dos
doentes e dos recém nascidos. O quadro tem apenas valor simbólico: o
escravizado não seria dono da própria vida, nem mesmo quando optasse pela
morte). Por isso, o professor é um homem amargo e descrente, embora idealista, tal
qual um personagem de Camus.
Prossegue a
narrativa com visitas às famílias envolvidas e também a algumas pessoas
“exemplares”. Entre elas, uma mãe
prisioneira, condenada à pena máxima, por se ter tornado chefe de tráfico de
drogas para ganhar dinheiro e assim educar os filhos, chegando a mandante da
morte de concorrentes. Esta se vangloria
do que fez, aceitando resignadamente, como uma mártir, a punição sofrida,
enquanto os filhos desfrutavam das benesses antes reservadas aos descendentes dos
ricaços, estudando no exterior.
Há também o
caso do bicheiro rico e filantrópico, que ajudava a comunidade, e até a própria
escola, proporcionando educação de elite para o filho, mas também mandando
matar quem prejudicasse seus negócios ilícitos. Este é outro caso de alguém que
rompeu o “círculo da miséria”, que condena os pobres a uma “escola senzala”, em
vez de uma “escola casa grande”, expressões do próprio autor do livro. Caberia
a pergunta: mas a que preço?
E num
intervalo desses contatos, o narrador visita a namorada. E lá põe-se a questionar as condições de
tratamento da moça para com a sua empregada de confiança, cujo filho estudava
em escola pública, com apoio da patroa. Compreensivelmente, não no mesmo
colégio do filho desta, que oferecia computação, inglês e a previsão de temporadas
no exterior. E neste ponto a narrativa perde a feição de romance,
convertendo-se numa exposição discursiva das ideias do autor do livro sobre o
desnível das escolas de ricos e pobres. Conclusão: consciente de sua impossibilidade,
como profissional de classe média, de proporcionar escola de luxo para o filho
da empregada, a jovem lamenta as “minhocas” que o jornalista pôs na cabeça
dela, e rompe com ele.
E afinal o
garoto desaparecido, tendo morado, a mendigar, mais de um ano na rua, volta para
casa, considerando a hipótese de voltar também para a escola. Nas negociações para isso, alega,
simplesmente, que a escola era muito “chata”, apesar do empenho da direção e de
todos os professores. Aí completa-se o quadro que o romancista-ensaísta tem,
obstinadamente, explorado em incontáveis textos: além da desigualdade gritante
entre as escolas “senzala” e as escolas “casa grande”, existem os problemas da
desatualização do ensino, da má remuneração e das greves dos docentes, e até
das condições físicas dos estabelecimentos. E a história termina com um sopro
de esperança, pela promessa do professor Véspera e seus comandados de tentar
remover as causas de desmotivação do “filho pródigo”.
Para nós, indo
além da posição declarada do autor destas linhas em favor do princípio básico proclamado
pelo Professor Cristovam Buarque – escolas do mesmo nível para patrões e
empregados, burgueses e operários, sob o patrocínio da Federação – cabe agora uma
visão crítica sobre como este seu último livro contribui para a nobre causa.
A apologia
do crime, que se pode depreender de uma atitude simpática a traficantes e
bicheiros, não parece justificar-se. Mesmo assumindo a postura de Maquiavel, de
abstrair qualquer dimensão ética em seus preceitos para a conquista e conservação
do poder, há de se concluir que se trata de saídas individuais, não projetáveis
para todo o mundo. Da mesma forma que, mesmo se a dona de casa de classe média,
por absurdo, custeasse o estudo do filho da empregada no exterior, seria esta
uma atitude isolada, sem qualquer consequência político-social. Não é o que
queremos.
Por outro
lado, a abordagem ressentida da “maldade” das elites, que transparece em alguns
trechos do livro, comporta temperamentos. Cabe lembrar Hannah Arendt, com o seu
conceito de “banalidade do mal”: realidades dolorosas nem sempre ocupam as
mentes das pessoas na sociedade. E a objurgatória contra toda uma classe social
só gera ressentimentos e divisões. (Lembremos o discurso político de “nós e
eles”, com que tantos votos foram perdidos). A “mauvaise conscience” dos ricos
não resultará em ações solidárias. Não é
por aí, também, que chegaremos ao nosso objetivo.
Então, que
fazer? (Pergunta, aliás, bem antiga...) Lutar para que a ideia da escola
uniforme, de boa qualidade, impregne a cabeça dos nossos líderes políticos, dos
quais dependem as decisões de governo. E conscientizar a todos os brasileiros
de que, sem ela, como insiste Cristovam, a abolição da escravatura não estará
completa. Como afirma ele, no seu livro: A ESCOLA É O ÚTERO DA LIBERDADE.
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