CHORINHOS
E CHORÕES
Clemente Rosas
A leitura do
livro de nossa amiga Teresa Sales, recentemente lançado (“Personagens do Choro
Pernambucano – Canhoto da Paraíba e João Pernambuco”), me trouxe motivação para
arriscar esta despretensiosa crônica. Não exatamente para criticar o livro, que
é bem informativo, redigido em linguagem
descontraída, e agrada a qualquer leitor, especialmente aos apreciadores do conhecido
gênero musical, a quem é atribuído o simpático epíteto de “chorões”. Mas pelas remissões a fatos, pessoas e
lugares de minha terra paraibana, a verdadeira “terra mater” dos dois
personagens.
Registro que
a autora foi generosa comigo, ao incluir meu nome na lista dos
entrevistados. Na verdade, minha
contribuição foi apenas no esclarecimento da verdadeira natureza do “Estado
Livre de Princesa”, onde nasceu e passou sua infância o primeiro dos
biografados. Embora louvado, por razões
pessoais e subjetivas, pelo mestre Ariano Suassuna, Princesa não era mais que um feudo
do “coronel” José Pereira, que rompeu com o Presidente da Paraíba e declarou
independente o município, fronteiriço com o Estado de Pernambuco. Contava com o apoio não declarado do governo
do Estado vizinho, e dos empresários do grupo Pessoa de Queiroz, que, apesar de
primos de João Pessoa, eram seus inimigos figadais, por razões puramente
econômicas: beneficiavam-se de um lucrativo comércio interestadual sem
impostos, interrompido pelo novo dirigente paraibano. Por isso o apelidavam,
ironicamente, de “João Porteira”.
E foi por
tal ligação que o “Estado Livre” ganhou bandeira, hino, constituição e demais
atributos: todos concebidos e elaborados pelo genro de um dos Pessoa de
Queiroz, José Inojosa. Suas “forças armadas” eram constituídas pelos jagunços
de Zé Pereira, além de cangaceiros desgarrados dos bandos tradicionais, alguns afilhados
do “Padim Ciço do Juazeiro”, e até soldados da polícia estadual, feitos
prisioneiros nas refregas, a quem o velho coronel, espertamente, oferecia, em
troca da liberdade, a adesão às suas tropas.
Para
descaracterizar, de uma vez por todas, a hipotética semelhança com o arraial de
Canudos, com o que parecia sonhar Ariano, e dar a justa medida do caráter
reacionário da secessão, basta considerar que, após deflagrada a Revolução de 1930 e
finda a aventura, enquanto Zé Pereira passava longos anos foragido, Inojosa, no
Rio, trabalhava como jornalista no periódico “Meio Dia”, de propaganda nazista,
financiado pela Embaixada Alemã.
Obviamente,
nosso Canhoto, então aprendiz de viola e sucessor do pai no ofício de
sacristão, nada teve a ver com os embates do tal “Estado Livre”. E em tempo
veio erigir sua fama em João Pessoa e Recife, fazendo com que hoje os Estados
da Paraíba e Pernambuco possam partilhar as suas merecidas glórias.
Aliás, não é
só neste caso que nosso vizinho do sul carimba como pernambucanos os paraibanos
ilustres que, por razões diversas, emigram para o Recife e Olinda. Políticos,
executivos, empresários, artistas como João Câmara e Raul Córdula, muitos são
os casos. Até o próprio Ariano foi rotulado
por um trêfego jornalista como “paraibano de nascimento e pernambucano de
coração”, o que é bem injusto. Apesar do
trauma da morte do seu pai, que fez sua família abrigar-se aqui e o fazia
referir-se à capital do seu Estado sem mencionar o nome que lhe foi atribuído
há quase um século, ele sempre se sentiu e declarou um desterrado, e tal
sentimento o acompanhou até a morte.
Mas falemos
também de outro caso, novidade para todo o mundo: João Teixeira Guimarães, o
João Pernambuco, nasceu na Paraíba! Mas
aqui o fato mais chocante foi a “apropriação indébita” de sua cantiga “Luar do
Sertão” por Catulo da Paixão Cearense, só bem tardiamente divulgada.
Deste, dizia Ariano que era falso até no nome, pois era maranhense. E se
observarmos bem veremos que a realidade descrita em seus “versos matutos”, uma
opção de escrita hoje felizmente abandonada, não é tão nordestina. Sua canção “Marruêro”, em que o herói é “ruim
como piranha, mais pió que a sucuri”, logo revela este fato: a sucuri, cobra
gigantesca, é espécie amazônica, de habitat aquático, e não a temos por aqui.
Na verdade,
o “grande Catulo” invocado por Zé da Luz, outro paraibano entre os poucos que o
seguiram (mesmo ressalvando o desconhecimento dele sobre o “sertão em carne e
osso”), era um grande pilantra. “Luar do Sertão”, que tantas vezes vi minha mãe
cantar, como sendo dele, não foi um caso único.
Cabotino, em um dos seus livros, escrito em bom vernáculo (“Mata
Iluminada”) está uma afirmação de claro pavoneio: “Com gramática ou sem
gramática sou um grande poeta”.
Enfim, todas
estas reminiscências e glosas me foram suscitadas pela leitura do livro de
Teresa, que recomendo a todos. Especialmente
aos “chorões”, em cujo time, sem maior pretensão, passo a me inscrever.
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